domingo, 5 de fevereiro de 2017

O ANJO DA ARTE.


''Existe um quadro de Klee ''  , escreve Walter Benjamin em uma de suas Teses sobre a filosofia da história ''que se intitula Angelus Novus . Nele se encontra um anjo que parece se distanciar de alguma coisa sobre sobre qual fixa o olhar. Ele tem os olhos arregalados, a boca aberta , as asas estendidas. O anjo da história tem que ter esse aspecto . Ele tem o rosto voltado para o passado . Onde aparece para nós uma cadeia de eventos, ele vê uma só catástrofe, que acumula sem trégua ruína sobre ruína e as lança aos seus pés. Ele bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o despedaçado . Mas uma tempestade sopra do paraíso e se prendeu nas suas asas, e é tão forte que ele não pode fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o acúmulo de ruínas sobe diante dele até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso ''. (W.Benjamin, Sobre o conceito de história)



Já numa outra gravura célebre  de Durer, que apresenta alguma analogia com a interpretação que Benjamin dá do quadro de Klee , há uma criatura alada sentada , no ato de meditar , olhando absorto para a frente . Ao lado dela , jazem abandonados no chão utensílios da vida ativa : uma mó , uma plaina , pregos , um martelo , um esquadro , um alicate e uma serra . O belo rosto do anjo está imerso em sombras : somente suas longas vestes e uma esfera imóvel diante de seus pés refletem a luz . Às suas costas, distinguimos uma ampulheta cuja areia está escorrendo, um sino, uma balança  e um quadrado mágico e, no mar que aparece ao fundo , um cometa que brilha sem esplendor . Sobre toda a cena se difunde uma atmosfera crepuscular, que parece extrair de cada particularidade sua materialidade.



Se o Angelus Novus, de Klee, é o anjo da história, nada melhor do que a melancólica criatura alada da gravura acima (de Durer) para representar o anjo da arte . Enquanto o anjo da história tem o olhar voltado para o passado , mas não pode se deter na sua incessante fuga para trás em direção ao futuro , o anjo melancólico da gravura de Durer olha imóvel para a frente . A tempestade do progresso  que se prendeu nas asas do anjo da história aqui se acalmou e o anjo da arte parece imerso em uma condição atemporal, como se algo , interrompendo o ''continuum '' da  história, tivesse fixado a realidade circundante em um tipo de suspensão messiânica . Mas, assim como os eventos do passado aparecem para o anjo da história como um acúmulo de indecifráveis ruínas , os utensílios da vida ativa e os outros objetos que estão espalhados em torno do anjo melancólico perderam o significado com o qual os investia sua utilidade cotidiana e ganharam um potencial de estranhamento que faz deles cifras de algo inapreensível . O passado, que o anjo da história perdeu a capacidade entender , reconstitui a sua figura diante do anjo da arte ; mas essa figura é a imagem estranhada na qual o passado reencontra sua verdade apenas sob a condição de negá-la e o conhecimento do novo é possível apenas na não verdade do velho . A redenção que o anjo da arte oferece ao passado, convocando-o a comparecer fora do seu contexto real no último dia do Juízo estético, não é, portanto , nada além de sua morte (ou melhor , a sua impossibilidade de morrer ) no museu da esteticidade . E a melancolia do anjo é a consciência de ter do estranhamento o próprio mundo e a nostalgia de uma realidade que ele não pode possuir de outro modo a não ser tornando-se irreal .


K.M.







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