O bom gosto não tem apenas a tendência de se perverter e se degenerar no seu oposto ; isto é , de algum modo , o próprio princípio de toda perversão e sua aparição na consciência parece coincidir com o início de um processo de inversão de todos os valores e de todos os conteúdos. No ''Bourgeois gentilhomme '', de Moliére , a oposição entre ''mauvais goût '' e ''bon goût''' era também aquela entre honestidade e imoralidade, entre paixão e indiferença ; perto do fim do século XVIII , os homens começam a olhar o gosto estético como uma espécie de antídoto do fruto da árvore do conhecimento, o qual , após ter sido experimentado , torna impossível a distinção entre o Bem e o Mal . E, já que as portas do jardim do Éden estão fechadas para sempre , a viagem do esteta para além do Bem e do Mal se conclui , fatalmente , sob o signo de uma tentação diabólica. Isto é, avança a idéia de que existe um secreto parentesco entre a experiência da Arte e o Mal , e que, para entender a obra de arte, a ausência de preconceito e o Witz são instrumentos mais preciosos do que uma verdadeira boa consciência .''Quem não despreza '', diz um personagem da Lucinde de Schlegel , ''não pode nem mesmo apreciar . Uma certa maldade estética (Astetische Bosheit ) é uma parte essencial de um formação harmoniosa ''. Às portas da Revolução Francesa, esta singular perversão do homem de gosto foi levada ao extremo por Diderot em uma breve sátira que, traduzida em alemão por Goethe quando ainda estava manuscrita, exerceu uma grande influência sobre o jovem Hegel .O sobrinho de Rameau é, ao mesmo tempo, um homem de gosto e um canalha ignóbil ; nele se apagou toda diferença entre Bem e Mal , nobreza e baixeza , virtude e vício: apenas o gosto, em meio à absoluta perversão de toda coisa no seu oposto, manteve sua integridade e lucidez. A Diderot, que lhe pergunta : Comment se fait-il qu´ avec un tact aussi fin , une si grande sensibilité pour les beautés de l´art musical , vous soyez aussi aveugle sur les belles choses en morale, aussi insensible aux chamres de la vertu ?? '' , ele responde que '' C´est apparemment qu´il y a pour les unes un sens que je n´ai pas , une fibre qui ne m ´a point été donnée , une fibre l âche qu´on a beau pincer et que ne vibre pas ''. Isto é, no sobrinho de Rameau, o gosto agiu como uma espécie de gangrena moral ,devorando qualquer conteúdo e qualquer outra determinação espiritual, e se exerce , no fim , no puro vazio . O gosto é sua única certeza e a sua única autoconsciência : mas essa certeza é o mais puro nada, e a sua personalidade e a mais pura impessoalidade. A simples existência de um homem como ele é um paradoxo e um escândalo : incapaz de produzir uma obra de arte, é , todavia , justamente dela que depende sua existência ; condenado a depender daquilo que é outro em relação à ele, nesse ''outro'' reencontra porém alguma essencialidade, porque todo conteúdo e toda determinação nele foram abolidas. Quando Diderot lhe pergunta como é possível que, com sua faculdade de sentir, de reter e de reproduzir, ele não tenha conseguido fazer nada de bom , Rameau invoca, para se justificar , a fatalidade que lhe concedeu a capacidade de julgar, mas não a de criar, e recorda a lenda da estátua de Memnão : Autour de la statue de Memnon il y en avait une infinité d´autres , également frappées des rayons du soleil ; mais la sienne était la seule qui resonnât ... le reste, autant de paires d ´oreilles fichées au bout d´un bâton ''. O problema em que Rameau encontra sua plena e trágica consciência de si é aquela da cisão entre gênio e gosto , entre artista e espectador, que, a partir desse momento , dominará de modo cada vez menos velado o desenvolvimento da arte ocidental . Em Rameau, o espectador entende que é um enigma inquietante : a sua justificação , em uma forma extrema , recorda a experiência de todo homem sensível que , diante de uma obra de arte que admira , experimenta quase o sentimento de ter sido fraudado e não consegue reprimir o desejo de ser, ele , o seu autor . Ele está diante de algo em que tem a impressão de reencontrar a sua verdade mais íntima e, todavia , não pode se identificar com ela , porque a obra de arte é, justamente, como dizia velho Kant : '' Aquilo que , mesmo que seja conhecido perfeitamente, não se tem, ainda assim , a capacidade de produzir ''. A sua dilaceração é a mais radical : o seu princípio é o que lhe é mais estranho, a sua essência está naquilo que, por definição, não lhe pertence. O gosto , para ser integralmente, deve cindir-se em relação ao princípio da criação ; mas sem o gênio, o gosto se torno um puro reverso, isto é, o princípio mesmo da perversão . Hegel ficou tão impressionado com a leitura do Sobrinho de Rameau , que se pode dizer que toda a seção da Fenomenalogia do Espírito que traz o título ''O espírito tornado estranho a si mesmo : A Cultura '' não seja, em realidade ,nada além de um comentário e uma interpretação dessa figura. Em Rameau, Hegel via o cúmulo ---- e, ao mesmo tempo, o início da degeneração --- da cultura européia às vésperas do Terror e da Revolução, quando o Espírito, alienando-se na cultura , só reencontra a si mesmo na consciência da dilaceração e na perversão absoluta de todos os conceitos e de toda a realidade.
K.M.
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