sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Massa abundante e linfática do tempo.

O tempo trivial e amorfo de todos os dias , é aqui que eu vivo , é aqui que ele se acumula ; ''lá '' é como conhecer outro tempo, o tempo da música silenciosa e suas partituras telepáticas, cujo fim já está presente em seu começo: a Eternidade. Mas aqui é como se eu me introduzisse em um impiedoso romance que não acaba mais, vivendo tudo isso com o tempo indolente e indefinido , abundante e pastoso, repleto de pequenos desabamentos dissimulados que são meu tempo aqui; e parece-me que eu não vinha tratando todos esses bens poéticos excepcionais com a devida atenção ---- meu único modo de tratá-los era a ausência e o Nada,   intercalados por raras e fulgurantes presenças. Como se essa ausência em relação a tudo fizesse parte da condição humana normal.  Eu desejava que os próximos dez dias tivessem uma qualidade excepcional desse Nada, ainda que fosse possível concentrá-lo em uma ou duas horas e até tele-transporta-lo . Tal Nada só poderia ser encontrado num momento de grande felicidade, uma espécie de doçura longínqua e um pouco cruel, e numa espécie de aristocracia também , espessa como vinhos encorpados ; felicidade por atacado, abundante : tinha sido uma bela oportunidade acordar de madrugada e caminhar até os degraus da igreja; um retorno rápido, antes da aurora, pelas ruazinhas enquanto as primeiras luzes se acendiam e as vielas sombrias abriam suas correntes enquanto eu passava ; um passeio em volta das muralhas de anúncios neon. Mas porque minha natureza, muito entusiasmada , ainda tinha alguma desconfiança cínica do Nada, de bancar o maravilhoso nos detalhes chocantes e que, apesar disso, são também parte do momento, e depois, apesar de tudo, num tempo bem cotidiano : o passeio pelas ruas de noite inseriu-se entre a espera irritante de um mandato que nunca veio e duas disputas acirradas há pouco por esbanjar a própria vida. Não por avidez de viver o máximo possível, que não é desperdício, mas por uma certa indolência, deixando correr os momentos para os moldes do passado , certo de que nenhum deles é insubstituível . Massa abundante e linfática do meu tempo aqui, o espírito do Nada é honesto demais. Por isso em muitos casos eu fico apegado, ainda que isso pareça dar um jeitinho de má-fé . Certamente : viver o Nada autêntico em cuja autenticidade há lugar para coisas ainda mais raras e excepcionais. Numa palavra: a licença poética fora-me dada, não havia mais o que fazer. Fôra uma licença difícil de ser obtida, pois nunca foi fácil para ninguém ''encontrar o Nada'' : e eu a aceitara como um empreendimento dos mais sérios. Pensei muitas vezes nas dificuldades dos homens em licença poética dentro do Nada. Mas para mim essas dificuldades foram nulas, e muitas outras que já mencionei . Direi inclusive que tive enorme êxito na minha licença, por estranho que pareça. Passei por tudo sem perceber que estava disputando uma partida, mas minha afabilidade natural, minha gentileza e minha sorte, bem como meu rosto e meu corpo , não me deixaram perder. Golpes nulos. A súbita desorganização do romance em boa hora eu a descrevi, e descreverei de novo amanhã;  essas rupturas bruscas no equilíbrio narrativo, que descarregam subitamente formas internas , no momento em que elas pareciam estar mais organizadas, são características da instabilidade da licença poética.

K.M.

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