sábado, 11 de março de 2017

Uma emergência que atingia a própria Dickinson

Era uma noite ártica tempestuosa e cortante, e eu pensava em casas à beira da estrada com famílias e café quente na mesa. O engarrafamento na neve era uma emergência que atingia a própria Dickinson . A cena além dos carros e das luzes era a própria Desolação, a camada de gelo da Groelândia na escuridão . Eu observava tudo impassivelmente, relendo a passagem dos palitos japoneses de Barthes pela milésima vez: ‘’O palito divide, separa, afasta, mordisca , ao invés de cortar e agarrar , como nossos talheres ; ele nunca violenta o alimento : desembaraça-o pouco a pouco (no caso das ervas) , ou então o desfaz (no caso dos peixes e mariscos )  reencontrando assim as fissuras naturais da matéria (nisso mais próximo do dedo primitivo do que a faca ) . Enfim , e esta é talvez sua mais bela função, o palito duplo translata o alimento, quer quando , cruzado como duas mãos , suporte e não mais pinça , ele se insinua sob o floco de arroz e o estende, o eleva até a boca da comensal , quer quando ( por um gesto milenar de todo o Oriente ) ele faz deslizar a neve alimentar da tijela aos lábios, como uma pazinha . Em todos esses usos, em todos esses gestos que implica, o palito se opõe à nossa faca (e a seu substituto predatório, o garfo ) : ele é o instrumento alimentar que se recusa a cortar , a aferrar , a mutilar, a furar (gestos muito limitados, recuados na preparação da cozinha : o peixeiro que esfola, sob nossos olhos , o salmão vivo, exorciza de uma vez por todas, num sacrifício preliminar , o assassinato do alimento ) ; pelo palito , o alimento não é mais uma presa que se violenta (carnes sobre as quais nos afincamos), mas uma substância harmoniosamente transferida ; ele transforma a matéria previamente dividida em alimento de pássaro , e o arroz em jorro de leite’’ . Finalmente (eu pensava, após a leitura) o motorista do ônibus, um homem bom e maníaco, pôde dar a partida e acelerar o motor a diesel . O ônibus com letreiro de ‘’Chicago ‘’ seguiu na frente, incerto em meio à nevasca . Dentro de alguns minutos, voltamos para o solo seco depois de horas de atribulação. Mas para mim foi um ‘’espetáculo ‘’ diferente, afastado como um sulco temporal na minha visão periférica. Depois aquele café cheio de gente e da excitação da madrugada de sexta-feira ---- principalmente por causa do engarrafamento provocado pela neve. O pensamento produzindo ressonâncias tumultuosas, ondulantes e inflamadas. Certamente, as idéias são sempre mais fortes que os fatos ; em caso contrário, o desejo seria menos belo que o prazer, e ele é mais poderoso, ele o gera.



K.M.

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