domingo, 26 de março de 2017

Ein Nichtanalysierbares.


Essa fascinação com a sistemática recorrência em Hegel do motivo do término tem desviado a atenção de suas análises sobre o começo e os inícios. Em qualquer totalização da temporalidade, a questão da gênese é tão essencial quanto a da consumação .Aqui , como na tradição mística ou na poesia, o fim está literalmente no começo. Os problemas lógicos e epistemológicos implicados por esse vínculo são tão relevantes para Hegel quanto o foram para Plotino . Mesmo levando-se em conta todas as dificuldades relativas ao idioma alemão e os próprios argumentos de Hegel, suas considerações sobre o Anfang, o início, na Wissenchaft der Logik estão entre as mais impenetráveis , o que torna fascinante seu enfrentamento das questões absolutas. Moderne Verlegenheit um den Anfang ( o desconforto moderno com o começo ) : tomada em relação a si mesma , a observação de Hegel poderia ser quase irônica. O que o mestre alemão questiona --- e a pergunta não é feita de forma direta com muita frequência em sua obra ---- é como pode haver um início para o conhecimento , para a Wissenchaft . A idéia de princípio contém etimológica e conceitualmente a de primórdio  . A ''forma do início '' é seu princípio... O primeiro pensamento,  uma noção profundamente hegeliana, é um ato de pensar ''aquilo que vem primeiro'' ou ''em primeiro lugar '', o panteão arquetípico e originário. Sob qualquer ótica positivista ou neurofisiológica, a sugestão de um pensamento primal, assim como de uma Ur-Wort ou da Palavra Perdida da Maçonaria, desafia toda plausibilidade. Uma noção vital à percepção histórica da interioridade humana em Hegel. Uma imediatez absoluta ----- provavelmente algo como a intuição radical de Husserl ---- caracteriza esse início de toda lógica, esse exercício primordial de ''pensar o pensamento '' . Hegel tbm o designa como ''pura presença '' , um aspecto  extremamente pertinente tanto ao tema da criação estética e da realização do principado por meio da forma, quanto do ''estado de presença'' real das culturas tradicionais e suas formulações tradicionalistas. Para nós ---- para qualquer mente humana ---- , '' pensar o começo ''significa retornar à fonte , '' proceder para trás '' no sentido mais urgente e responsável . Tocamos aqui, inclusive um motivo que é fundamental para várias elaborações metafísicas e estéticas : o da reminiscência platônica, das tentativas de Platão para elucidar o preexistente transcendental sem o qual jamais poderá haver conhecimento rigoroso ; motivo que tbm envolve as sugestões wordsworthianas e românticas da celebração de uma intuição seminal na criança e a associação dinâmica da matéria e da memória. O ''ricorso '' , o movimento oceânico que corre de certa forma para o alto , define tanto a viagem de volta para casa de Ulisses quanto o retorno do Peregrino à fonte primeira ---- ao ''batismo '' do ser  ---- na Commedia. É tbm a espiral  interior no núcleo formal  e substantivo da Recherche de Proust . Ou como afirma Hegel : o Anfangende , o ''nascente '' , nunca se separa da do Fortgang , o progresso ( ''gang '' : caminhada e movimento) no sentido da marcha da consciência ou do trabalho sendo concluído . A colocação é quase cabalística: o GEIST ''decidindo-se e entregando -se à criação de um mundo '' zu Schopfung einer Welt sich entschliessend ) deve acabar retornando, numa circularidade perfeita, para o ''unmittelbares Sein, o ser não-mediatizado . É quase certo que tal formulação é implícita à imagem , em si mesma carregada de implicações estéticas, da doutrina de Nietzsche do ''Eterno Retorno ''. Mas o que é isso ---- das Anfangende ???? ''Der Anfang ist noch Nichts , und es soll etwas werden . Der Anfang ist nicht das reine Nichts, sondern ein Nichts, von dem etwas ausgehen sol ; das Sein ist also auch schon im Anfang enthalten . Der Anfang enthalt also beides , Sein und Nichts ; ist die Einheit von Sein und Nichts , ---- oder ist Nichtsein , das zugleich Sein , und Sein , das zugleich Nichtsein ist '' . O começo é uma NADA que , por ser ''impuro '' , representa a matriz a partir da qual algo deve surgir . A existencialidade constitui um potencial fascinante no singular vigor e na inerência de uma NADA  (um Nichtsein ) que é ao mesmo tempo um Sein ou um ''ser-aí ''. A ambiguidade crucial que, para Hegel , não significa nem uma contingência nem uma deficiência gramatical, localiza-se no ist : ''o começo 'é' , por enquanto, NADA . Esse ''é '' assinala e determina sua própria presença seminal prolífica. O VAZIO É ATIVO . Ou parafraseando Carlos Castaneda : 'O vazio é o lado ativo do infinito ''. Na liturgia anglo-saxônica do senso comum e na tradição do ceticismo pragmático, costuma ser algo quase endêmico negligenciar proposições dessa espécie como mera verborragia e exemplo tipicamente teutôticos de confusão filosófica. Mas aqui de fato estamos transitando nos píncaros inacessíveis  do incogniscível , terreno muito pouco frequentado pelo discernimento absoluto . O Nichts de Hegel, a caminho de se tornar Etwas, parece perfeitamente análogo às premissas que fundamentam a astrofísica de hoje e as teorias sobre o começo do universo na cosmologia do final do século XX . E é muito comum que a ciência mundana venha revestindo com formulações matemáticas as sugestões verbais e metafóricas de uma epistemologia que a precedeu , em potência e em ato . ''O Anfang '' afirma Hegel ''segue em direção ao ser na medida em que supera (aufhebt ) ou se distancia do não-ser .Trata-se do movimento mais essencial da dialética : o da negação da negação ou da aniquilação do NADA ( o néantissement du néant, na famosa formulação de Sartre ) em qualquer ato iniciatório, genuinamente criativo . É que cada vez que tentamos imitar alguma coisa, esquecemos que essa coisa foi produzida não pela vontade de imitar , plagiar ou apropriar-se , mas por uma força ativa real com a qual podemos voltar a entrar em contato reativando seus arquétipos. O que preserva essa força no interior do desdobramento do ser é justamente essa aniquilação ou ''superação'' do NADA pela ativação dos arquétipos ---- mas os problemas que enfrentamos ao buscar expressões verbais exatas para tais conceitos representam, por si só, algo como uma emissão radioativa numa câmara de nuvens que acaba rastreando energias intensas mas imateriais. Mais uma vez, Hegel circula em torno de uma núcleo formado pela noção de ''primazia '': aquilo que constitui e energiza o começo é ''ein Nichtanalysierbares '' (algo que não pode ser analisado ). Essa concessão me parece fundamental . Muito daquilo que é fundamental no discurso teológico , filosófico e estético é ''inanalisável ''' . Essa resistência  à análise não representa uma refutação de seus valores de verdade nem de sua função indispensável nas prioridades geradoras da intuição .  Pelo contrário. A análise pode ter chegado tarde na história da consciência, e pode mesmo haver uma espécie de consenso , que deveria ser estudado com o mais escrupuloso cuidado, segundo o qual o ''analisável '' coincide (em última instância ) com o trivial . Poderíamos considerar esse Nichtanalysyierbares, ''em sua imediatez incompleta '' , como ser puro ou ''vazio total'' (das ganz Leere ) ( como a física e os postulamentos de unidades elementares sem massa nessa direção ). O vazio hegeliano acabará legando ao modernismo uma de suas mais preciosas tradições : é dele que Mallarmé derivará seu BLANC , seus ''espaços brancos '' ( a pintura não figurativa  minimalista tbm incorporará o vazio ) ; a inferência hegeliana da ''ausência '' geradora subjaz a toda retórica da desconstrução . Mesmo no irônico postulado de Derridá que sustenta que a linguagem só ganharia um sentido estável se seus signos estivessem ''dirigidos a Deus '', continua perdurando uma espécie de eco da impressionante observação de Hegel segundo a qual ''umbestrittentse Recht hatte Gott , das mi ihm der Anfang gemacht werde ( Deus deveria ter o mais inalienável direito de ser aquele com quem o começo é feito ). A fusão absoluta do ser e do nada por meio do processo do devir envolve uma contiguidade íntima entre a gênese e a extinção, entre o Entstehen e o Vergehen . Em termos ontológicos, até a criação mais esplêndida e assombrosa continua efêmera. Dessa forma, nas ''arcanas '' das meditações de Hegel sobre o começo é possível encontrar um tipo de sugestão e de figurações cuja recorrência pode ser verificada no teor imediato de experiência comum , e que acabariam se revelando especialmente fecundas ao longo da arte e da literatura moderna. Um segundo texto fundamental é o Uber die Verfahrungsweise des poetischen Geistes ( Sobre os modos de desenvolvimento do espírito poético ) de Holderlin . Um texto que apresenta semelhanças e diferenças com o pensamento de Hegel na mesma medida em que se poderia apontar semelhanças e diferenças nas relações pessoais, inicialmente simbióticas mas posteriormente problemáticas, entre dois indivíduos.  E talvez valha a pena enfatizar que mesmo que acabássemos perdendo , por algum motivo, a poesia incomparável de Holderlin , suas contribuições à filosofia das formas literárias e da hermenêutica permaneceriam um triunfo de primeira ordem .''Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie''. Como levar a sério esta frase do Conde de Lautréamont ? Mas enquanto teimarmos em ver nela uma simples ''raillerie'' incompreensível , não perceberemos que sua verdade está inscrita na estrutura mesma da sensibilidade moderna. 

K.M.

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