Em Medora, o incalculável Missouri tinha escavado um desfiladeiro na rocha e ele era o coração das terras bravias. Eu tanto lera e meditara durante a viagem que , ao descer do ônibus, só conseguia conceber a vida em suas alturas metafísicas. Que terras ! (pensava) O que o Missouri não faz ?! Embora misteriosamente oculto nas minhas ocupações xamânicas primitivas, meu entusiasmo era o de um espírito metafísico dominado por sua necessidade central : suprimir as barreiras entre interior e exterior, nenhuma distinção entre a consciência ativa e a espontânea. O individualismo contra o universal do modelo estruturalista, o corpo contra o conceito , o prazer contra a seriedade acadêmica, o diletantismo poético contra o cientificismo estéril. O oracular contra a cronologia. Rocha?? Aluviões ? Ou tínhamos grandes extensões congeladas, varridas por anônimos ventos de diamante , ou fundos desfiladeiros negros como carvão ,ou vales de Iowa ou deltas... ao invisível luar de neve nessa parte mais ao norte da América, as fantasmagóricas colinas rochosas cobertas de neve erguem-se em formas protuberantes e assombradas . .. charnecas ambíguas para a lei dos povoados vestir ... Medora era uma cidade assim como Belfield, para dizer a verdade, e minha concepção de turismo permanecia um mistério cada vez mais insolúvel diante de tantas cidades iguais. O Grande Oeste americano que se estendia tão longe quanto Pasco , Washington, até lugares ao norte de Oshkosh , Nebraska. Talvez devido à minha aparência insignificante, alguém ali tenha me tomado por apenas um menino caindo de sono ( o olhar fixo, imóvel e amuado ) ; mas imediatamente senti um perfume de mulher que reluziu em minha alma, como nela reluziram logo depois minhas frases abafadas: ----- O prazer dos textos literários clássicos (eu disse à ela) e o gozo direto dos textos radicais modernos. Os primeiro certamente mais ''legíveis '' (fruíveis e interpretáveis com maior estabilidade) mas os segundos indiscutivelmente ''escriptíveis '' por excelência, isto é , suscitadores de um outro tipo de escritura, como Ulisses e a Recherche. Quando Roland Barthes publicou Le Plasir du Texte , ele desagradou á muita gente ao mesmo tempo ; conseguiu atrair protestos dos mais variados campos, e mesmo politicamente opostos. Os marxistas o acusavam de ser um aristocrata, um individualista, ou solipsista moderno , ou apenas um alienado. Os estruturalistas e semiólogos cobravam dele a ausência de rigor científico , o abandono do método. Firmou-se então em opinião o que antes era suspeita : não se podia confiar em Barthes, não se podia ser barthesiano com tranquilidade, porque ele não parava nunca no mesmo lugar. Barthes se deslocava com um à-vontade despudorado, mas seus deslocamentos eram uma tática perfeitamente coerente com suas convicções fundamentais: essas sim permanentes (.) -----, eu diss.e . Fitei minha interlocutora e me senti mais deslumbrado com ela do que já estivera com a paisagem à nossa volta até então . E assim mantinham-se meus pensamentos, que seguiam também assombrados pelas rochas e neves lunares do desfiladeiro de terras bravias. Os sentimentos brotavam confusamente do meu coração borbulhante, qualquer posição ideológica que se assumisse, era facilmente utilizado pelo sistema dominante. Os discursos se instalavam e ganhavam consistência ao se repetirem ( eu pensava ) por isso era preciso mante-lo sempre fresco e ativo, transitando pelos arranjos e circuitos de todo o espectro politicamente funcional, como uma graxa. Quando, perto de Dickinson , o ônibus lutava para manter-se na estrada sob uma nevasca baixa, meus olhos foram bruscamente tocados pela brancura das espáduas dela (espáduas ligeiramente rosadas que pareciam corar , como se se sentissem nuas pela primeira vez ). A dois quilômetros de Dickinson, a nevasca tornara-se impenetrável , e um engarrafamento quilométrico se formara na negra meia-noite de Dakota, vergastada pelos ventos de Saskatchewan .
K.M.
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