sexta-feira, 28 de agosto de 2015

2 - CAVALO MORTO

Agora, cinco anos depois, ela reaparece aqui dizendo que leu tudo que publiquei na internet nos últimos tempos e que... seu único fraco é a televisão, que assiste horas a fio. ----- Tv a cabo (.) --, disse, e me convidou a pôr ''algo especial'' na vitrola. ----- Shérérazade, de Rimsky Korsakov (.) -----, sugeriu ela, e eu respondi que seria uma ótima opção, se tivéssemos dezessete anos de idade e fôssemos europeus. Observei-a atentamente: ela parecia realmente segurar algumas daquelas lembranças com as duas mãos, maravilhada com a matemática oculta de algumas daquelas formas poéticas inacreditáveis, a espiral narrativa perfeitamente logarítmica e as ''câmeras'' crescentes dentro das personagens. ----- O que meu poema não conta (eu disse) é que no final o herói abre os olhos e recupera sua personalidade (: ou seja, eu, o homem conhecido neste livro(: ''Os dois provavelmente terminal batendo um longo papo, hein(?)'', digo para mim mesmo, olhando para você (.) ---, Julia estava mais gorda, sem que isso destruísse completamente certa graça natural que adejava, tendo como foco os pulsos e os tornozelos. Lutando para me ajustar à presença dela e ao ambiente da casa vizinha ao zoológico, lembrava-me em rápida sucessão de rabiscos à crayon com letras de jardim de infância, de Juiz de Fora numa longa noite de chuva, de poemas presos com ímãs na porta de uma geladeira, nas minhas telas pintadas pela metade, encerradas na praia de todos os verões; em quartos alugados às pressas, em colagens de textos perfeitas, em haikus escritos com pena de corvo; em libros recortados durante um certo Natal; em Joana, Sabrina, Beatriz, Carmen, Isabel e outras; neste circo de papelão embaixo da minha mesa que ninguém sabe quem fez. --- Como vai sua ex-mulher, K(?) ---, ela me perguntou. ----Joana (?), ela agora é uma encantadora granfina da elite branca que tira seu espírito de alguns livros que lemos juntos naquela cobertura imensa (: todo mundo que pinta ''vê'' alguma coisa em Mallarmé(.. ao passo que Sabrina, que nunca lê nada, tornou-se realmente ''alguém'' (.) ----, mas Julia não sabia de quem eu estava falando. ------Ela também pinta (?) ------ , perguntou-me. ---- Não, ela é uma prostituta de luxo (.) ---, respondi. ------- E voce frequenta a dama (?) ---, Julia ria. ------ Não tenho dinheiro para pagar o preço dela(: acho que ela nem mora mais na cidade (.) ------, eu sempre tinha amado Julia, do meu jeito, desde quando ela tinha apenas dezessete anos; ela sempre adotava diante de mim uma atitude de brilho cortês, de entusiasmo filial. ---- Sabrina é a melhor amiga de Joana (.) ---, concluí; na minha lembrança, a linha firme do queixo da minha ex-mulher, do seu pescoço e dos seus ombros, aparecendo com a suavidade fantasmagórica daquelas velhas fotografias de estúdio. ------- Outro dia ela me convidou para ir num evento e eu achei chatíssimo (: ela começou a estudar e trabalhar na empresa do pai, antes de terminarmos(: então, eu comecei a andar demais sozinho pela cidade, e a admirar demais as garotas que sentavam do meu lado nos ônibus, e numa bela manhã acordei com uma vontade incrível de pegar um ônibus para Ilhéus e escrever alguma coisa em completa solidão(.) -------, as pessoas da sociedade facilmente imaginam os livros como sendo uma espécie de cubo, do qual uma das faces é retirada, de modo que o autor se apressa em fazer entrar  os fantasmas que invoca no escuro. ---  Certo, não seria chato dar uma olhada nisto(Julia disse: lendo você, eu tomei o hábito de pesquisar entre os grandes autores antes de escrever uma carta ou um e-mail importante para alguém(:  de um eu apanho um cumprimento... de outro um pouco de persuasão, de outro.. sei lá,... um epigrama bem elaborado.. e envergo tudo como uma vara até ela se tornar uma arco perfeitamente tenso, sempre causa impacto (: ainda mais se levando em conta que, de outra maneira, eu não teria absolutamente nada a dizer, como Antonin Artaud: ''toda escrita é uma bela porcaria'' (: mas te confesso que fazer isto com perfeição é muito mais difícil que escrever com as próprias palavras, é necessário muita cultura (.) ----, Julia realmente aprendia comigo e, vendo ela falar eu me lembrava de seus lábios fazendo aqueles biquinhos antigamente, pequenos e tensos em volta dos sons da língua francesa; quase me apaixonei por ela novamente. ------- Sem dúvidas há muitas confidências também, na escolha dos remendos (: vejamos esse remendo aqui, não me lembro a autoria, mas é especialmente notável. Posso ler pra você(?) -----, perguntei. --- Pois fique à vontade(.) ---, ela disse. ------ ''A buceta de Marta. Ela bem  que sabe foder quando se concentra na coisa. Vou pegá-la meio dormindo, com os antolhos cerrados. Ali, bem quieta, deitada, enroscando-me na posição de colher. Ponho a chave na fechadura e empurro a porta de ferro. Ferro frio contra pica vibrante. Devo encostar-me furtivamente, e enfiar enquanto ela sonha. Subo silenciosamente as escadas e tiro desordenadamente as roupas. Posso ouvi-la se virando aprontando-se em seu sono para jogar para cima de mim a sua bunda quente. Deslizo suavemente para baixo das cobertas e me aconchego a ela. Finge que está desligada, morta para o mundo. que ela pode acordar. Devo fazer a coisa como se eu também estivesse dormindo, se não ela se sentirá insultada. A ponta já roça os cabelos soltos. Ela continua terrivelmente quieta. Quer trepar, sinto, mas não cede. Está bem, brinque de morto comigo. Eu a viro um pouco, só um pouquinho. Ela reage como um lenho encharcado. Vai permanecer assim pesadona e fingir que dorme. Já enfiei a metade. Tenho que movê-la como um guindaste, mas ela é móvel e está tudo perfeitamente lubrificado. É maravilhoso foder a mulher da gente como se fosse um cavalo morto''.

(continua)

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