segunda-feira, 8 de julho de 2019
GRADAÇÃO (romance)
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Por meio das revistas que Otília trazia do salão de beleza, vi que o momento decisivo da campanha de Patrícia se aproximava. ----- Ela está preparadíssima (.) ------, disse para Otília. ----- Alguns podem até se sentir incomodados, não só por perceberem, mas por estarem gostando dos novos sucessos dela (.) -----, continuei. Otília, cuja devoção se inflamava em épocas decisivas, rezava pelo sucesso dela. ----- Que ela passe (!) ------, dizia. Superada essa grande prova (eu pensava: a do caluniador), haveria algumas outras, mas menores. Menos terríveis e exigentes que essa primeira, eu tinha certeza. E aquilo lhe daria o direito sem reservas de ''portar o céu dentro da cabeça''. ----- Fique tranquila, Otília (eu disse) A leitura sobre os triunfos da minha protagonista está fadada a suscitar felicidade em quase todos os que acompanham minha história. Há na história, desde o começo, uma forte sugestão sentimental, ou melhor, mágica de como o caluniador deve ser tratado. Não é algo de que eu possa me orgulhar no momento, mas na Roma Antiga o adversário de Patrícia teria sido marcado com a letra K em sua testa, inicial de ''Kalumniator '' (.) O incipt da campanha adversária apresentou -se desde o começo como um processo calunioso e hipócrita. Com ele veio o rebaixamento do nível intelectual do debate. A amargura e apatia do eleitorado. A ''lei e a ordem'', que ele promete restabelecer no seu mundo de ficções perigosas, são as mesmas da década de 1960, quando ser branco era a garantia de se obeter um bom salário, uma casa e dois carros na garagem (.) Mas seu programa fiscal é tão regressivo que impossibilita suas proclamações de se tornarem a VOZ do ressentimento operário da América. A fabricação de seus produtos em Bangladesh e na China e o emprego de funcionários sem documentos em seus hotéis de luxo são a prova disso (.) Lembremos que o alguém (jemand) que, com sua calúnia, deu origem ao Processo de Kafka, foi seu próprio protagonista, Joseph K. Assim também eu, K, em busca de minha própria medicina, intentara um processo calunioso contra mim mesmo. Mas o ponto sobre o qual me movo (a auto-calúnia) não pode, obviamente, ser considerado trágico, e sim cômico. Somente meus olhos foram capazes de ver tribunais e juízes nos quartos vazios onde passei a maior parte do meu tempo até agora (.) intentei um processo calunioso contra mim mesmo como instrumento útil para provocar emoções rápidas na leitora. O gesto cômico por excelência (!) -------, eu disse. Otília se perguntava se eu estava fazendo da literatura minha própria medicina ou meu próprio direito. Pois ela calculava ser pouco provável que eu, um jovem mais ou menos normal, ou antes inteligente, uma vez admitido no ''Processo'', não chegasse mais cedo ou mais tarde na tão sonhada ''auto-condenação'' kafkiana (.) ------ Mas a culpa aqui (eu disse) não é a causa do Processo (.) A calúnia, no direito romano, era considerada um ''desvio''. ''Temeritas'', de ''temere''. Étimo de Treva ou ''Cegamente''. Em Plauto e Terêncio o verbo ''acusare'' é mais usado em sentido moral que jurídico. Acusare significa ''chamar em causa'', e a ''nominis delatio'' é o que de fato dá início ao processo no direito romano.. Mas quem liga para isso (?) -----, eu disse. ----- Estou adorando (protestou Otília) Apreciando seu momento de ''mea culpa'' e desilusão. Escritores como você costumam acreditar que é possível trabalhar para Deus e o próprio ego ao mesmo tempo (.) O resultado é sempre cômico, como você disse. Ha haha, no fim sempre sobram uma ou duas leitoras encharcadas em banhos de percepção erradas, implorando pelo Amor de Deus: ''MAIS'' (!) ------, ela disse. Mas eu estava preocupado era com minha representação, minha ''chamada em causa'' nas ''categorias'' do meu edifício literário. ----- ''Kategoria'', em grego, significa ''acusação''. E 1-) eu me auto-caluniara; 2-) auto-caluniando-me, eu fizera um conluio comigo mesmo; e 3-) eu tergiversara sadicamente. Para os romanos ''processo era guerra'', e agora eu prevaricava e tergiversava, buscando desativar e tornar inoperosa as acusações que fizera contra mim mesmo. Eis tudo (!) ------, concluí. Sentada em sua mesa, Otília brincava com a Blackbird que eu dera-lhe de presente. A cortesia obrigava-lhe a me acenar com a cabeça e sorrir para mim de dois em dois minutos. Otília Schessel estava com um vestido de lã cor de vinho da Borgonha e a boca seca, tensa dela denunciava alguma coisa mais funda que a mera cortesia. Em vez de olhar para mim, ela olhava para caneta preta entre seus dedos. ----- Ambição (ela disse) Ambição de ser admirado por suas supostas ''convicções morais''; falo do ego de todo político conservador da atualidade, mais do que de você, K. Mas quando levo em conta os fartos materiais com que você andou nutrindo sua Psique, penso que isso lhe dá o direito de, AGORA, nutrí-lo só com o mais puro ''néctar meditativo''. Você se tornou uma espécie de filósofo cósmico sobre o assunto, representando o ''mártir patrioteiro'' no palco americano com um arsenal de mentiras poucas vezes visto na história dos Estados Unidos. A águia americana, natural e intrépida, cujo bico indicava estar cantando a ''otium'', o ''aud'', o ''aupeis'', e não a ''pax'' americana. E agora, o arruaceiro redimido depois de seu segundo silêncio, antes de voltar para a crista da onda da Justiça na tarde mais espantosa de sua vida. Uuuuuu...... (...) ------, ela disse. Na conversa de Otília, assim como na minha, não existia realmente nenhuma fronteira de conveniência a ser observada, nenhum tabu pago. Podíamos misturar tudo e era revigorante identificar os aspectos idealistas dela soldando os discursos dos políticos à um mundo tão diferente , aflitivo e belo como o meu. Um mundo espantosa que informava à sua corte internacional o quão exigente, franco, agressivo e livre da necessidade de agradar poderia vir a ser. Eu era só um astro anônimo convertendo néctar e pólen em mel geopolítico. ----- Para os romanos a palavra ''pax'' nunca indicou um acordo ou pacto. Era antes a palavra ''otium'', citada há pouco por você, que designava uma espécie de ''gesto puro'', com o qual nada se queria dizer. O gótico ''aupeis'' (vazio) e o islandês ''aud'' (deserto), sugeriam, igualmente, a inatividade e a vacuidade de um aperto de mão, em meio à guerra. Ora, toda luta entre os homens é motivada pelo desejo de reconhecimento. E a Paz que se segue à tais lutas é sempre um acordo que satisfaz condições mínimas para um mútuo e precário reconhecimento. Paz de nações, de direito. Ficções de identidade e linguagem presentes em todo ato de reconhecimento. A Paz, muitas vezes, consiste em aceitar a impossibilidade de nos reconhecermos em qualquer imagem ou identidade. Existe, de fato, uma Alegria mais antiga que a Paz, que, saída da Guerra, encontrava sua paciente permanência no não-reconhecimento. A exposição da inaparência como única pátria da humanidade é a marca daquele que ''porta o céu dentro da cabeça '' (.) ------, eu disse.
2
Otília não estava preparada para meu interesse em assuntos paralelos. O homem que ela conhecia só tinha objetivos práticos, e uma vez que nosso produto tornara-se vendável, cada palavra agora envolvia um certo risco. Meu idealismo vinha sendo construído numa linha de esforços que colocava (de fato) em risco muitos corações. Alimentava meu espírito, nos momentos mais difíceis, com romances sobre detetives particulares que obtinham suas vitórias com grande dificuldade, sofrendo adversidades, traições e algumas pequenas derrotas enquanto lutavam com afinco até a vitória. Mas na minha idéia de felicidade (como já disse) vibrava indissoluvelmente a idéia de Redenção. E lendo sobre alguns americanos heróicos e sua luta contra a tirania e a injustiça, eu me especializava nesse tipo de ''sofrimento heróico'' em nome da América, o que me concedia uma inquietante força messiânica. ----- Não há Felicidade possível que não leve em conta essa tarefa (eu disse à Otília) Que se configura num ''encontro secreto'' entre as antigas gerações de heróis e a nossa (.) ''Eulosung'' significa, antes, redimir cada instante do passado transformando-o em ''citations à l´ordre du jour ''. Estar na plena posse do passado é poder citá-lo em um longo encadeamento dramático como forma de arrancá-lo de seu contexto, para destruí-lo e ao mesmo tempo remetê-lo à sua origem. Esse é o Dia do Juízo Final (!) , em que intelectos ardorosos e as idéias sociais mais puras se encontrarão citadas na origem, como potência destruidora da Justiça. Talvez essa seja uma idéia da Redenção não muito consoladora, mas para uma mente que sempre ardeu em sua própria chama, não pode haver nada mais justo do que uma interrupção messiânica do devir. Meus pensamentos e idéias estão mais próximas do trabalhador comum dos que os pensamentos de Thomas Jefferson jamais estiveram. Na autêntica escrita histórica, tão forte quanto o impulso destrutivo é o impulso da Salvação. Tom Paine sabia disso, por isso muitas vezes agia sozinho, contra a corrente, dizendo que era dotado de uma independência desafiadora, beligerante e épica. ''MINHA ÚNICA IGREJA É A MINHA MENTE (.)'', ele dizia (.) -----, concluí. Eu e Otília vivíamos apertados naquele escritório, de modo que certas gentilezas não eram possíveis. Eu me sentia, inclusive, incomodado por uma suspeita preocupante: estava sendo sincero demais no meu entusiasmo (?) Mas uma porção de gente também tinha voltado a fazer isso (articular a ''causa em Deus'', em inglês ou francês). A recuperação de Patrícia na pesquisas, por sinal, se dera de forma completamente apaixonada e improvisada. ------ Qual a sensação mais marcante nesse novo livro, K (?) -----, Otília perguntou-me. ------ Não sei. Talvez a de que tenha sido encontrada uma ''nova língua'' para se falar , adequadamente, de um ''novo projeto de nação''. Para os americanos em condições de votar nessas eleições, não se trata tanto de redimir o passado, mas de lançar sobre ele um olhar que o completa, ou cumpre (.) ------, eu disse. Otília estava sentada na frente do arquivo, oprimida. Então eu disse para ela comer e ela começou a comer o que sobrou do coelho ensopado , na panela, com uma colher . Mas era-me difícil olhar para ela de maneira ininterrupta, enquanto ela comia: a colher da panela para a boca, e da boca para a panela. ----- A história da cultura (continuei) aumenta o peso de seus tesouros sobre nossos ombros, mas não ''ativa'' as forças necessárias para sacudí-las e agarrá-las em nossas mãos (.) Kafka, por exemplo, se relacionava ativamente com tais forças, através dos conceitos judaicos da ''halakah'' e da ''aggadah'', jogando uma contra a outra em busca de uma recíproca anulação. Mas muitos outros homens, de intelectos vigorosos e muitas vezes febris, aspiraram e alcançaram feitos idênticos. Eu mesmo, hoje em dia, sou dos poucos capazes de conversar sobre livros como se algo realmente decisivo estivesse em jogo em cada um deles. Meu método de leitura não se resume à abrir um livro para cultuá-lo, como um resenhista profissional; ou para ser elevado por ele, como um filósofo de jornal. Mas , antes, para ''lutar boxe '' com o livro. Se a redenção jornalística de um livro é um pagamento que iguala e e salda contas, sua liquidação, por K.O, é sua transformação em valores líquidos. Sua transfiguração. Transvaloração. (.) ------, eu disse. A relativa ausência de desejo de Otília, naquele momento, entupida de coelho ensopado, sugeria que eu estava disposto à um empreendimento que satisfazia algo em mim do qual ela não tinha ainda notícia. ----- A audácia intelectual deve ter um propósito vigoroso, corajoso, para não virar algo de fácil digestão, rasteiro e vulgar (.) ------, eu disse. Assim, declarava-me mais próximo do ''Urphanomenon'', de Goethe, do que da idéia de ''origem'' atual, que simplesmente multiplica a troca de cópias e simulacros entre os leitores. Eu agia antes como um vórtice no fluxo do devir, manifestando-me no Inconsciente Coletivo da América como uma dupla instância de restauração e completude. Salvar um fenômeno histórico (político ou econômico ) na IDÉIA , significava, para mim, mostra-lo em sua consumação, como totalidade. Tarefa para uma arte crítica e profética, capaz de convencer, ao apresentar-se como projeto eminentemente prático. E meu projeto (eu pensava) representava para Otília, na forma de dois socos cruzados (Redenção e Salvação) a promessa de iniciar o mundo nesse espetáculo: A Parúsia. Ao olhar, mais tarde, a foto de Patrícia no jornal, em meio a sua campanha, fixei-a num esboço luminoso de dois parágrafos, cuja prosa abraçava a concepção criadora da imagem e revia no gênio o elemento feminino. ------ A criação, de fato, em seu acabamento, gera de novo seu criador (eu disse à Otília) . Recebida uma primeira vez da profundidade do seio materno , deverá agora ansiar somente por um reino mais luminoso. Nossa pátria não é onde fomos gerados, mas onde a Felicidade alcança uma completa semelhança consigo mesma (.) ------, concluí. Findo o dia de trabalho, levantava-se o dia sobre outras lidas. Dentro de Otília, havia agora algo que não parava de invocar, dia e noite, noite e dia, a Luz sobre a qual eu sempre lhe dissera que ela não poderia entender, pois não era algo de que propriamente se falasse.
3
E com frequência, Otília se levantava de sua mesa, andava pelo escritório, comia, comia compulsivamente ou, saindo, fumava um cigarro na entrada do prédio e voltava. Havia apenas uma semana que ela alcançara a marca de cento e cinquenta quilos. ------ Tenho uma doença de mulher (ela disse) embora não saiba direito o que seja(.) Reduzir a volatilidade do PIB e a taxa de inflação, com certeza, só vão piorá-la(.) Enquanto os Bancos Centrais só se preocupam em salvar o setor financeiro, os senhores da opinião se esforçam em negar protagonismo ao ''interest rate'' e à ''taux d´intérêt '', para inverter a relação de causalidade (.) Dizer que a Grande Moderação é causada pela mudança na estrutura produtiva é pura arte (.) -----, concluiu ela. Essa (eu pensava) era sua natureza de fera. No escritório impregnando das minhas labutas filosóficas matinais, a noite lhe parecia menos negra, e a tarde, menos morta. Ela adorava, nas horas difíceis, apertas os dedos roliços e sebosos em volta da mesa e ligar a televisão no noticiário político. Olhei para a tela e vi o candidato republicano, com sua cara alaranjada e voz barriguda, atrapalhando-se todo ao falar asneiras sobre política econômica. Aquele (eu pensava) era o candidato da segregação violenta, da discriminação e do sucateamento da inteligência americana. Eram aqueles os discursos que vinham tirando a coragem de Otília de emagrecer e voltar a sonhar. Soquei violentamente a mesa em sinal de protesto e mandei ela desligar a tv. ----- Laisser pisser le mérinos (.) ----, eu disse. Literalmente : ''Deixe o carneiro mijar ''. Eu me adestrara sozinho no terreno da polêmica oral e escrita, e não me prenderia jamais às ferramentas publicitárias alheias. Isso era algo que eu não queria, de jeito nenhum, em nenhuma circunstância. Reivindicava neutralidade e asseverava que a investigação empírica não escapava das infestações conturbadas do ''mundo da vida''. ----- A queda na taxa de juros real não pode ser atribuída à um excesso da poupança na economia dos países desenvolvidos (eu disse à ela) A inclinação da curva de Phillips à vagar ao longo de anéis ondulantes. Houve mudança na propensão a investir e nada mudará isso. A curva da poupança e do investimento deslocaram-se para baixo devido à problemas demográficos incontroláveis, redução de gastos públicos e queda do crescimento (.) - ----, concluí. Otília foi até a porta e olhou a lua, em busca de consolo. Perguntas sem forma, firmando-se umas nas outras, esmagavam-se, moles, na sua mente. Algumas, no entanto, não guardavam nenhuma relação com comida.Eu estava algum tempo à sua escuta e não escutava nada. Foi só no dia seguinte que decidi contar à ela que usava espaço duplo em tudo quanto escrevia, para permitir a interpolação de idéias novas, depois de já escrito o texto. Aquilo a ''entorresmou''. ----- Para buscar expressões mais acuradas. É o que digo: não amontoe seus pensamentos (NUNCA) numa cerrada página digitalizada. Abra parágrafos insuspeitados e trate como novas idéias os tópicos destinados a detalhar a idéia original (.) Todas essas chamazinhas intelectuais são já conhecidas dos homens, de longa data : elas e seus tremores na sombra revolta (.) TÉDIO MORTAL (!) Muitas vezes me pergunto (alarmado) como foi possível que ''isso'' tenha me enredado com tanto entusiasmo em aspirações literárias salvacionistas, aspirando a emendar os erros do mundo por meio da palavra escrita à mão, com caneta preta. O fato é que ''isso'' (uma vez mais ) veio a me proporcionar a sensação do poder ''mágico'' da arte e reforçar minha idéia supremacista original contra o ''Nihil in intellectu quod non prius in sensu '', de Aristóteles e Tomás de Aquino, segundo o qual ''Nada há no intellecto que não tenha estado antes nos sentidos ''. Tal empirismo, apesar de tudo, me ensinara que, ao contrário do que diziam os professores, é realmente possível começar uma frase com ''E'' (.) -----, eu disse. A forma de minhas conversas com Otília era frouxa, sem enredo. ----- Experimentais (ela disse) Conversamos o tempo todo num alto estilo coloquial e aliterativo, que deriva, em parte, do esforço de dramaturgos americanos da década de 1930 para forjar um idioma nativo identificável, mas com matizes líricos e sugestões de gravidade que lembram um papagaio na gaiola (.) -----, ela disse. Nossos rostos estavam tão perto um do outro que eu sentia no meu o rosto o bafo de chocolate com nicotina da saliva dela. ----- Apenas vernáculos poetizados (comentei ) Nada mais que ritmos de fala normal com uma ligeira pompa literária, o que cria um tom de espírito democrático e amplitude heróica. Walt Whitman reivindicava a América para os rústicos, mas eu a reivindico para a gente comum, como eu e você. O Proletariado e o Lumpen . Quero apenas compartilhar o caráter nacional , sem histeria. Com justiça, mas sem histeria. E método nenhum é mais eficaz do que a participação por meio da destilação linguística dos entusiasmados sentimentos de ''comunidade'' e ''pertencimento''. Represento a América em escala reduzida e, assim, personalizo-a. Me derramo na história e a história se derrama em mim. Me derramo na América, e a América, em mim. É embriagador (!) -----, eu disse.
4
O Espírito do Homem Comum agora inspirava em Otília uma vasto amálgama de adoração Democrata que democratizava inclusive o risco, tornando-o não só uma questão de americanos bravios, mas de uma coletividade formada pelos ''simples e justos '' que se uniram, como que através de um espelho, ao sentido de nossa visão. Uma efusão de palavras, todas as manhãs, agora borbulhavam e subiam direto do coração americano dela direto para minha boca, onde o mérito e o povo eram uma coisa só. Mas no fundo nunca tive na cabeça mais que vento. Minhas relações com o sindicato foram de curta duração. Eu teria suportado Johnson, Corwin, Watson, etc, e as homenagens que Otília fazia a cada um deles, todas de mais de uma hora de duração, insistindo na paradoxal superioridade daquilo que ela identificava como a humanidade americana absolutamente comum: ----- Homens comuns por toda parte (ela dizia) Sem nada de espetacular (.) -----, mas para mim, ainda assim eram indigestos. Eu havia tentado aproximar-me das raças vermelha, amarela, chocolate, prata e amarelo-uva por muito tempo, murmurando timidamente, pelos cantos, que talvez a ‘’grandeza da nação’’ e o ‘’povo ‘’ fossem uma coisa só. ----- Talvez (...) -----, eu advertia sempre, no entanto. Mas me obrigava, ao menos em termos imaginários, a tomar essa idéia como realidade. Com o tempo, obviamente fracassei. Sempre acabava revirando os olhos, ao reprimir meus verdadeiros gestos, e olhava para o povo com espanto e temor. O escritório agora estava cheio de gente comum, o que me deixava praticamente sem fala. Mas Otília acreditava, cada vez mais, ter tudo muito bem arranjado. ------ É racismo o mito de que os salários aumentam os preços (.) -----, ela disse. Se eu não estivesse com tantas dores no corpo, naquele momento, teria me jogado pela janela. Mas o escritório, além disso, ficava no subsolo, portanto limitei-me a dizer: -----A desvalorização das commodities e o fortalecimento do dólar vão segurar a inflação na América e o Fed não agirá até o fim do ano (.) Se eu pudesse dedicar todo meu tempo livre à ‘’Causa’’ e ficar sem nada que me prendesse, poderia te ajudar inclusive a construir uma Central Única dos Sindicatos aqui no escritório. Mas as leis naturais são feitas e relacionadas umas com as outras como se a Faculdade de Julgar as houvesse produzido para seu próprio uso (.) A atual aversão à riscos é mais uma correção dos mercados de bônus e Treasures do que uma mudança de cenário. Juros negativos na Europa e no Japão seguirão dando suporte aos mercados emergentes. Minha opinião é de que o Fed simplesmente não gosta de inflação (.) -----, eu disse. Tudo se ligava na minha mente. Mas as portas que batiam, os passos ensandecidos dos operários pelas escadas, os barulhos do povo na rua, me impediam de organizar as coisas. ------ Sei apenas que há vivos acima e abaixo de mim (eu disse à Otília) Nada mais. Portanto, julgo que este escritório esteja no subsolo. Mas daqui, às vezes, vejo o céu, e outras janelas do outro lado, aparentemente. Talvez, inclusive, isso seja uma espécie de cripta mental onde estou e o espaço que tomo por céu não seja mais que uma fosso largo onde se realizam reuniões de trabalho no idioma carismático dos operários. Mas eu não faço mais proselitismo comunista, como quando tinha quinze anos. E concluir que todos esses passos acima da minha cabeça são puras alucinações é um passo que ainda hesito em dar. Pretendo me agüentar aqui por mais algum tempo, na base da conversa mole, antes de falir totalmente. Mesmo os caras como Johnson e Corwin, cujas estruturas frásicas não são tão simples quanto as dos operários comuns, sofrem a influência corruptora da imobilidade, prevendo o dia em que terão que andar com as próprias pernas. Se querem mesmo que eu assuma o comando dessa CRUZADA DO TRABALHO, saibam que, para mim, o princípio vital da natureza é, ao mesmo tempo, o da própria alma humana, ambas tendo a mesma igualdade de direitos procedentes da Unidade do Ser. O mundo se reflete no Sujeito. A enorme fragilidade do sonho americano nos ombros do proletariado exige um sindicato forte, comandado de forma progressista, controlado pelas bases... entende (?) O objetivo de se trabalhar com ‘’metas de inflação ‘’, por parte dos Bancos Centrais, sempre foi o de eliminar o viés inflacionário de estruturas que priorizavam o crescimento e o emprego. E, pensando bem, eu não saberia hoje situar a estabilidade dos preços mediante aqueles antigos fatores intermediários, como os agregados ou a taxa de câmbio. Antes das ‘’metas de inflação’’ tudo era assim : opaco. A sensação do mercado, no entanto, é de que agora a morfina chegou ao fim. A certeza de que os estímulos não foram suficientes reflete-se nesse escritório, onde nada se parece mais com um passo que sobe do que um passo que desce, ou que vai e vem sem mudar de andar. Nesse caso, todo trabalho que me dou aqui é absolutamente inútil. Apenas meu bom senso indicando que ainda ofegarei por muito tempo , antes de sucumbir à uma poesia mais responsável. Digo: antes de ser capaz justificar tudo quanto escrevi. Os provençais chamavam de ‘’razo’’ à exposição das fontes ocultas de seu canto. É algo que se encontra bem discriminado no Livro dos Ofícios, de Cícero (.) -----, eu disse. Não sei bem se foram as recentes emoções de Otília, mas pela primeira vez, desde meu último livro, eu me senti arrebatado pelo meu próprio intelecto. Compreendia exatamente o que era a América. A luz que reinava no escritório, naquele momento, era estranha como eu. Havia uma espécie ininterrupta de dia-e-noite ali comigo. E uma vez que escurecia, eu me limitava a esperar o dia com ligeira impaciência. Tal como esperava pela noite, assim que amanhecia. Meus textos poéticos agora sempre terminavam com glossolalias, o espírito e a voz fundidos. Após me colocar no mesmo nível de grandeza de Ezra Pound, eu me banhava numa luz que, para mim, era difícil saber de onde vinha. Otília ficava lá fora a maior parte do tempo, na claridade simplificada do mundo exterior, no ar que cintilava humildemente no granito da parede do outro lado da rua, brilhando com toda sua mica. Ela sempre estava lá agora, fumando contra a vidraça, na claridade, batendo papo com todos os outros e discutindo ‘’todas as questões políticas do mundo ‘’. Eu olhava para a cena com meus grandes olhos jupterianos e pensava: ‘’Isso não poderia existir se a própria luz não estivesse olhando naquela direção (.) ‘’
5
O fato era que meus gestos de gigante e meu jeito bem humorado e franco não estavam mais agradando Otília. Eu a tinha ouvido no telefone, falando com Watson que eu estava sendo o menos eficiente possível na defesa da coletividade . E que eu ''não me dispunha a ajudar quando surgiam dificuldades reais''. E Otília tinha razão. Watson e Johnson também. Eu apoiava o controle de preços, as medidas do Fed, as agências do governo que regulam as instituições financeiras, mas não defendia os direitos dos operários com unhas e dentes. Enquanto Watson imitava Lincoln só para espinafrar os republicanos do Mississipi e a polícia do interior, eu me afastava imperceptivelmente do sindicato, contando cada passo meu na rua , na direção da ilha financeira. Toda vez que acendia um cigarro, começava a rever as atividades de investimento do setor bancário num microscópio mental, produzindo efeitos negativos sobre a segurança e a solidez das finanças globais. Mas os sindicalizados de Otília adoravam a ventriloquia das destemidas mixórdias de lincolnismos, trotyskismos e o´dayismos que colocavam qualquer operário com megafone no papel de um briguento síndico do Brooklin. Eu não conseguia persistir naqueles hábitos como os outros, obstinados em girar nos seus sulcos interiores sem perspectivas reais de aumento. Ao mesmo tempo, tinha começado a fazer outros serviços. ''Os operários falam de um jeito durão '' (eu pensava) ''Mas mutilados em sua veia política ''. Antes de anoitecer, eu seguia direto para casa, em Greenwich Village, e ficava uma hora de molho numa banheira de água fumegante no fundo do corredor do meu apartamento alugado; depois ia para a cama com um dicionário de francês, um livro de Mallarmé, os jornais do dia e meu bloco de anotações e o que tivesse à mão para comer. Na última ocasião, foi isso que precedeu minha ida à casa biblioteca do ***, onde Otília fez sua acusação final contra mim: ----- Você não é só anti- povo e anti-sindicato, mas também anti-liberal e anti-inteligência (!!) -----, o que me pareceu absurdo e falso, e me fez esquecer boa parte das idéias com as quais eu pretendia impressioná-la em favor de uma cabeça mais fria, usada agora para tentar impressionar Fay, que estava mais interessada nos limites impostos ao ''merchant banking'' do Goldman Sachs e no incrível controle que algumas instituições de Wall Street tinham sobre as commodities físicas. ----- O planejamento de venda de petróleo da Argélia para a Austrália e Cuba e do Mar do Norte para a África do Sul (eu disse à Fay), constituem já uma tendência. A de países produtores expandirem sua base de clientes em meio à baixa de tarifas e fretes e preços unificados ao redor mundo. O preço do minério também poderá seguir caindo no mercado chinês com a desaceleração das importações e o menor nível de exportação de aço do país no ano. Compraram menos da matéria-prima na Austrália e no Brasil, em agosto... O que você acha (?) -----, perguntei-lhe. Estávamos postados, naquele momento, no Marllon´s Bar do topo do mundo por instância do comitê de monitoramento. E por causa de minha posição política ambígua, eu caíra num completo ostracismo intelectual . Agora eu só era apreciado ao falar de números e leis. Para mim, conversar com Fay era como ouví-la andar velozmente à minha frente, esgueirando-se entre as sugestões do Fed e seus pedidos ao Congresso. Era como consultar a Lei Dood-Frank para sustar as limitações da Regra Volcker. Ela era mesmo um amor; estava hospedada no Butler Hall e a recepcionista de lá sabia de tudo entre nós. Não era mais necessária para mim nenhuma vinculação comunista para explicar meu repentino olhar brilhante. Eu era agora o homem de (minério de) ferro livre daquelas noites vazias no escritório do sindicato. Fay fornecera um antídoto para aqueles vapores ruins e remotas vagabundagens que estavam enferrujando minha armadura. Noites em que sustentar minhas idéias entre estranhos tornava todos os dias duros e incertos. Ela parecia grata pelo fato de eu ver nela a mulher de mente adequada, perfumada e com grandes olhos pintados. Eu me sentia irreal e despojado de distinção diante dela, uma vez que ela se mostrava tão convincente no papel de senhorita distinta e supercivilizada que havia escolhido para si. Sua voz mansa. Sua dicção exata. ''Antigamente (eu pensava) o inglês polido era um estilo de linguagem que muitas moças americanas aprendiam sozinhas e com esforço, quando queriam ser atrizes. No caso de Fay, aquilo realmente pegou: ela conhecia todos os movimentos, o sorriso benévolo, a prudência levemente dramática, e todos os gestos sutis com que interpelar as notícias do mundo financeiro. Mas, de repente (é preciso dizer) ela dava uma guinada e e sua voz às vezes tomava um curso paralelo, como um pavio flamejante, tão parecido com a própria vida sobre a Terra que deixava a gente desconcertado. Eu era só um garoto excitável e Fay tinha muito da sedução do rádio e da tv em seu sangue. Quando eu já estava achando impossível encontrar alguma coisa para falar para ela, via-a por acaso andando na rua; acompanhei-a com o olhar, caminhando pela calçada, atenta para pegar um táxi. Seu andar era cheio de orgulho feminino, e balançava um pouco seu corpo, como fazem as mulheres quando andam depressa. Ainda era dia, mas os sinais luminosos além do Hudson já principiavam a brilhar num céu verde-pálido, refletindo-se também nas águas escuras do rio, enquanto na luz acobreada do pôr-do-sol a linha negra do asfalto estava suavemente desfigurada. Ela me viu e veio falar comigo: ----- Você fica tão atônito quanto eu diante de você(?) -----, sussurrou-me, como se nós dois tivéssemos quinze anos. O prazer da não-intimidação, era assim que aquilo podia ser descrito, no momento. Eu sabia como ela se sentia porque eu mesmo não conseguia parar de olhar para ela, e olhava-a como se, caso eu conseguisse continuar olhando pelo tempo necessário, um SENTIDO talvez emergisse de repente da cena. Eu a olhava fixamente nos olhos, não só por causa da sutileza dos seus gestos e da dignidade do seu porte físico e da elegância da sua beleza, que pairava entre o exótico e o recatado, e cujas proporções se alteravam o tempo todo na minha cabeça; um tipo de beleza enfeitiçante em virtude de algo que trepidava dentro dela , apesar de toda sua contenção; uma volatilidade que, na ocasião, eu atribuí corretamente à discreta exaltação que devia advir do fato de ela ser ela mesma.
6
Suavemente o espaço das minhas pequenas posses zune de novo no mundo, quando chego em casa. Eu já tinha experimentado algo parecido outro dia, e Fay sugeriu que talvez fosse apenas minha cabeça. ----- Mas me parece realmente (eu disse à ela) que estou dentro de uma cabeça (.) Só que no outro extremo do espectro social, onde é impossível, ou antes inútil, constatar isso (.) Você sabe, há uma enorme diferença de temperamentos e interesses. Uma hierarquia me separa da gente que vejo na rua. Essas quatro paredes de osso maciço que encontro em casa, assim que tiro os sapatos e apago a luz, pouco depois reaparecem lá na rua, me acompanhando com um olhar gigantesco, cada passo meu. Eu, particularmente, nunca engoli isso, mas a leitora média parece acreditar em mim quando digo que essa cabeça é a encarnação de um deus, uma inteligência artificial, mas daí a dizer que seja minha própria cabeça, não, isso nunca (.) Uma espécie de ar circula nela, digo ''com certeza'' circula nela, como um veneno, e quando tudo se cala quando apago a luz eu sinto o disparo daquela cabeça contra os tabiques de osso que ela rejeita como destroços de uma figura menor (.) O ar que circula nessa cabeça é daqueles que se prestam à divina combustão de Santelmo, no centro da qual ela desata e ata de novo em outras ondas, e daí, sem dúvida, seu barulho de praia cósmica, dentro do meu silêncio (.) Tal silêncio tem uma lógica toda própria. Vejamos se é mesmo o vácuo, se fecho os olhos e vogo através dos ares. Reduzir tudo isso à uma questão de pálpebras é obviamente preguiça da minha parte, do olho penetrante e espreitador que se nega diante das palavras (.) -----, concluí. Naquela noite, após tirar os sapatos e apagar a luz, a Terra toda se transformara numa plataforma de embarque, na qual eu pensava com um mínimo de terror e deslumbramento. Embarquei minha respiração nela e passei os dois dias do fim de semana num estado inesquecível do qual não saberemos nada nunca. ----- O recuo (expliquei à Fay) foi grande demais dentro dos meus ossos, ou talvez nem tanto, ou nem sei mais, a não ser que aquilo me permitiu resolver tudo e acabar tudo(.) Tudo que digo é a respeito de um menor grau de coisas dizíveis, que não eram realmente da alçada da fala (.) Como um desabamento de areia no lugar da minha ausência, no período em que o tempo passou suprimido. Nada restando fixo naquela grande cabeça cósmica fora o arregalar dos meus olhos, antes de deixar cair sobre eles a cortina do tempo, em forma de pálpebras. (.) -----, eu disse. Enfim, mas devia ter dito à ela também que todas aquelas sensações me eram familiares de longa data. Estava me lembrando agora: a Lua, não muito distante do meu olhar, redonda como um sinal de trânsito. Mas falar desses períodos de liquefação em que passo ao estado de vegetação lunar, para quê (?) Não é tanto a aspiração faustiana ou o vampirismo psíquico, mas antes uma estratégia de terra calcinada que me faz detalhar tudo aquilo que não compreendo depois que faço. Mas faço do mesmo jeito: e certamente todas essas ideazinhas saem daquela grande cabeça de Lua, como flechas. Depois que fujo para a felicidade do esquecimento, reconheço tais pensamentos quebrando-se contra outros muros. Ainda assim, dão eles sinais de ampla reflexão. E em função de um apurado sentido de deferência, faço todos eles desembocarem de mim vagindo, em pleno ossuário. A maior parte deles se engancham no meu esqueleto e me incham, enquanto não escorrem totalmente. E me inchando, incham minha lenda. Depois infiltram-se nas histórias que conto a mim mesmo sem parar, desde criança. Sempre me pergunto o que mudou desde então para que eu continue me excitando tão horrivelmente, como um lunático. É isso então, não consigo responder à essa pergunta. E também não consigo parar. Nada mais do "'Eu e o Universo'' resta em mim além disso. E o entanto me parece que todo dia nasço de novo , vivo longamente e e logo depois morro.. Ultra specie aeternitas. Não um homem de meu próprio tempo, mas com acesso ao mecanismo centralizado de dados dentro da Grande Cabeça que fará surgir o Novo Adão. Bem, algo bastante estranho, por sinal. Ainda mais julgando tê-lo feito surgir num único final de semana. A verdade: mas encontrada por aproximação, batendo nela com os ossos. Os ossos da cabeça. Mundos novos ? Nem tanto, não. Feliz ? Nunca, isso nunca! Mas com o sentido da potência mística do gênero humano para evitar certos protótipos da ignorância. Mais propriamente, aquilo que faz os homens se dizerem: ''Vamos, a vida... é preciso aproveitá-la (.) '' Assuntos muito simples. Digam o que quiserem, mas quando Wagner era a avante-garde do simbolismo, os alemães, oprimidos de maneira insuportável pelo fato de serem alemães, se serviam dele como quem se serve de haxixe. Era o fundo musical de um ''pogrom''. Ah, minhas pequenas distraçõezinhas. Elas realmente existem.
7
Após desobedecer as instruções iniciais de Fay, eu mudara para uma voz baixa, mas aflita : ----- Nicht schiesen (!) ----, rogando para que me permitisse continuar deitado, com meu queixo proeminente apontando para os meus pés. Ela sugeriu que eu me deitasse de bruços, pelo menos, para experimentar algo novo enquanto tentava encontrar uma correlação pertinente (digo direta) entre espaço fiscal e taxa de juros no mundo. Nada feito: ou não havia, ou era uma tarefa tão confusa, que me parecia impossível ser enunciada racionalmente. Eu estava muito branco, e roxo debaixo dos olhos, minha face parecia estar coberta de barro estelar. Sentia o túmulo do universo através da minha pele, mas os números do Japão estavam lá: ----- É um dos países mais endividados do mundo (eu disse) Há tempos vem sustentando uma dívida pública equivalente à 250% do PIB, mas com taxas de juros menores ou iguais a zero (.) -----, concluí. De fato, Fay tinha razão: eu não estava mais vestido para viver, mas antes despido por aquelas bermudas coloridas; marcado, perdido, hesitando agora entre voltar a ficar de costas ou , antes, num inédito meio-termo, sobre um dos flancos. É preciso dizer que o gosto vestuário de Fay era totalmente Dior, o que me fazia pensar que tudo teria acontecido diferente com ela, se tivesse escolhido outro indivíduo. Porém , eu tinha uma premente necessidade de continuar. Não via nada na minha frente a não ser palavras escritas à mão: ----- Os Estados Unidos tem uma dívida de mais de 105% do seu PIB e o Fed pratica taxas de juros inferiores à 0,5%. Os países da zona do euro estão em média endividados em 92% do seu PIB, e o BCE também pratica juros nulos (.) -----, continuei. Ela sentou-se na beira da cama e comeu um pedaço do meu pão alemão; talvez estivesse fraca, naquele instante, para ir mais longe que isso no produto de sua pilhagem. Espasmos do risório como quando se atravessa um pântano a pé. ----- É impossível que isso continue assim por muito tempo (.) -----, eu disse. Era uma hora qualquer da tarde, e de um dia desbotado, então pouco importava ser de tarde. O ar imóvel parecia sem promessas nem lembranças do que era o calor. Eu encostara a bochecha na perna dela e agarrara um de seus braços com tanta energia quanto se estivesse grudado na parede de um penhasco, mergulhado num estado vegetativo à prova de psicologias, de convencimentos em sentido contrário. Minha voz pilava o ar do quarto como um tambor, ou como quando fazemos um pano dançar numa bacia de tinta . ----- A Rússia deve em torno de 18% do seu PIB e pratica taxas de juros elevadas. Eram quase tão elevadas quanto as do Brasil, até outro dia. E na Índia elas são de 6,5%, mas sua dívida é de 66% do PIB. Na China a relação dívida -PIB é de 45% e os juros 4,3% . O FMI não oferece nenhum amparo intelectual à quem tenta relacionar espaço fiscal e juros; nos últimos dez anos, Rússia, Índia, China , México , Estados Unidos, Reino Unido e Japão apresentaram média deficitária, enquanto Chile, Alemanha, Turquia e Brasil , superávit. Novamente, O Japão apresenta o pior resultado fiscal entre esses países. Quando a coisa aperta, sobra tudo para os bancos... a barrela de liquidez produzindo aqueles barulhos de sucção no mercado. E aquela espécie de rugido longínquo da terra que bebe os últimos suspiros de aflição do mundo vergando-se encharcada de liquidez. Então, a idéia de CASTIGO se apresenta à mente de todas as autoridades monetárias do mundo (.) -----, eu disse. Não era mais inteiramente humano, naquele momento, e Fay percebia isso. Via em mim uma aura de pureza heróica, após vencer a gente da rua pelo desprezo e me elevar tão alto acima das nuvens de tempestade esotérica, mesmo que ela me visse a maior parte do tempo deitado. Alguém que estava o tempo todo bebendo água, café , fumando e alongando os membros e estalando as articulações, em busca de uma substância mágica secretada pelo próprio sangue em determinadas condições. Impressionada talvez pela rigidez extraordinária da musculatura e velocidade da minha corrente sanguínea, ela finalmente desistiu. Toda mulher tem suas tentações, e render-se foi a tentação de Fay. Exteriormente, sua visão materializava em mim o ''gigante puro'', que mantinha a escória de lado, andando invisivelmente na rua: magro, mãos enormes, veias saltadas por todo corpo, que fora operário , lavrador, andarilho, estivador, marujo e agora era o que ela chamava de ''ator-horizontal''. ----- Muito atraentes, esses tipos (.) -----, confessou-me ela um dia. ----- Mas me é difícil acreditar que algo assim tão cru possa também ser terno, previsível e adequado (.) Não que me importe com o fato, tão reduzido à última expressão você está. Não encontro em você muita coisa para um apelo realmente humano, ou para a súplica diante de um rosto contorcido por sentimentos humanos; Crueza terna (certo?), e esses tendões aparecendo visíveis no pescoço... a ternura rústica e abrutalhada. Quanta conversa mole, K (!) -----, ela disse. Havia algo exótico, para ela, no fato de eu ter passado tanta dureza na vida. Eu tinha vivido de verdade, durante anos, habitando os buracos mais fedorentos do mundo. E talvez não tivesse valido à pena, afinal. Vivendo abaixo da linha da pobreza, eu ficara encantado com as fantasias da economia não-monetária. E agora, a mente de Fay se armava dos perigos que eu enfrentara sem nenhuma consciência do que estivera vivendo. Inconsciente dos meus pecados, eu senti que continuar vivendo em pé não seria pena suficiente para saldar o mau carma acumulado; ou que tal pena era em si mesma um pecado. O êxtase místico era uma dádiva inesperada para um pecador. ----- Depois que passei a viver deitado (eu disse) foi que percebi quanto tumulto e embaraço havia nas análises econômicas prospectivas diante do mundo ''pós- quantitative easing'', com juros negativos, baixo crescimento, deflação e políticas de estímulos e liquidez. ''Há momentos (eu pensava) que desistir é mais razoável, mais decente, quando persistir na mesma direção pode representar uma desgraça maior. Assim como eu, eles não deveriam passar de certo limite de persistência. Tomem um drink (!) Façam experimentos arriscados com incalculáveis montanhas de dinheiro fictício. Chega de simular essas equações misteriosas que depois chovem violentamente sobre os mercados em pânico. Depois que me deitei, tudo pareceu-me surpreendentemente fácil de ser compreendido. Entendi que era errado esticar o material humano em demasia. Sublimei a humanidade. Vivo no Abstrato Puro. A ESCOLHA MAIS NOBRE. Assim também pensava o velho Aristóteles. Deitei-me e não me levantei mais. Apenas para treinar boxe. Foi assim que as ideías de pecado e pena se confundiram na minha cabeça, tão perfeitamente que restou delas uma frase solitária latejando no vazio dos meus olhos: ''ISSO VAI ME CUSTAR CARO. ISSO VAI MECUSTAR CARO. ISSO VAI ME CUSTAR CARO''. Como fazem aquelas frases de causa e efeito nas cabeças dos que ainda pensam. Algo que aumentou assustadoramente o conjunto da minha sabedoria básica (.) -----, eu disse. Súbito, Fay levantou -se e pareceu achar o ambiente do quarto agradável. Algo que ninguém além de mim conseguiria.
8
----- Pouco importa o resultado do debate (eu disse à Fay) O importante é que eu continuo cabendo nesse quarto. Sejamos práticos: caibo nele, e estou tranquilo. Sei que caberei nele o tempo que for necessário. Enquanto o adversário de Patrícia preferiu ir mais devagar, ou só atacar em defesa própria, por causa das minhocas que seus assessores colocaram em sua cabeça, ela foi fundo logo de cara: Me pareceu bem esperta demais para ele, e polida, irascível por trás de toda aquela civilidade (.) ------, eu disse. O pensamento que carregava meus pés (aos olhos de Fay) era sincero, mas não podia esperar, de modo que ela já esperava por um choque fatal contra a ombreira do século. ----- A idéia da cabana de novo, K (?) (ela disse, misteriosamente) Certas idéias tem realmente sua história, afinal. Sua cabana já foi de Rousseau, de Thoreau, de Robinson Crusoé. A cabana do despojamento da Grande Cabeça (apaziguamento ou desafio) livre de manipular e ser manipulado. A velha cabana oriental do homem que parte para o meio do mato em busca do último bastião da vida e do pensamento. Particularmente, acho possível alcançar o mesmo resultado contemplando pinturas chinesas na sala de um apartamento em NY , tomando chá (.) -----, ela disse. Mas Fay se referia, antes, ao longo silêncio que deveria ter me tornado mudo para sempre e, no entanto, encontrara em mim a persistência e as nervuras de idéias consideradas estúpidas durante muitos séculos, como o sultanismo aparentemente perdulário de Luís XIV reproduzido em De Gaulle. Aquilo me fazia lembrar de tramas complicadas de romances do século dezenove e dos ideogramas nos cantos de Ezra Pound. Compartilhando minhas lembranças, eu tentava mostrar à ela meu lado ''melhor''. E ele está lá, entre ideogramas e romances russos. ----- Um novo Carlos Magno (eu disse) Ou a ambição imperial da China no Ártico russo. A Islândia apoiou a China e multiplicaram-se acordos científicos e comerciais da noite para o dia. Vai entender! A idéia do poder naval dominante no Norte (Como a China se tornou um ''Estado Ártico ''? da noite para dia ) ,velha há dois séculos, e que agora, sob a mira de Pequim, continua sendo trabalhada da mesma maneira (A corrida para o Norte ). Veja: TRABALHADA (!) Não faz diferença que em breve a dominação dos mares por navios de guerra seja coisa tão obsoleta quanto Asurbanipal. E também há os russos com sua ''tenacidade nacional''. Há muito os admiro, desde os tempos de Gogól. Dê-lhes um sistema qualquer, deixem que vislumbrem uma ''idéia grandiosa'' em algum nicho da realidade, e logo mergulharão de cabeça até o fundo com ela, aplicá-la-ão até o fim, pavimentando o mundo inteiro com material duro e latarias de tanque. Meu pensamento está sempre enxugando esses cenários de luta resfriada. O que preciso agora é de algo imprevisto, pois isso me faria bem. Algo positivo, certo (?) ------,concluí. O que eu dizia não soava ostentoso, para Fay. Claro (eu notava) que nosso caso não era o da reunião de almas gêmeas. Longe disso: o tempo todo ela cobria a boca com a mão e ria encabulada por trás dos dedos. Mas lá estaria ela, , logo mais, pelas longas galerias do conhecimento, mandando-me relatórios sobre pequenos sóis e luas em gráficos coloridos sobre os homens e seus ecossistemas de cifras. Numa situação como aquela, ninguém fica muito tempo sentado. Não em Nova York. Eu mesmo tornava-me frequentemente exagerado, quando passava muito tempo afundado na poltrona, relendo os russos: ---- Eis o que está resolvido (dizia eu) Tenho o tempo exato, se calculei bem. E se calculei mal tanto melhor, tanto faz. Aliás ainda não calculei nada.
9
Havia de fato um número muito grande de correntes em atividade no meu cérebro que não tinham nenhum interesse para os outros. ''Graças à Deus'', eu pensava ''Ao menos isso eles deixaram pra mim (!)'' . Através daquelas correntes, eu conseguia me desprender das pessoas e retornar sozinho , muitas vezes tropeçando, para minha montanha de entulho fora da zona de identificação humana. Era ali que eu conferia um ar de bom gosto à peças realmente horrorosas, que eu chamava de ''wadis''. Ali estavam elas: pequenos despenhadeiros criados pela contínua erosão de minhas preocupações. O mercado adotaria mais cautela diante do risco externo; O debate americano seguiria em questão nas economias emergentes; Mas minha vaidade, agora, estava devidamente lisonjeada por Fay e, para fechar, eu estava sentado diante de um prato de lagosta ao termidor. ''Tome-a agora alguém'', eu pensava. Um filme sobre travessia de fronteiras sociais passava na minha mente enquanto eu buscava o equilíbrio perfeito e sem sentimentos no qual repousava meu espírito. Me perguntava o que era a ''Igualdade'' . ''Que todos os homens sejam irmãos (?)''. Não . ''Igualdade significava que todos faziam parte de uma elite . Napoleão e Stálin, por exemplo. Para os quais, provavelmente, o grande prêmio do poder consistia na possibilidade ilimitada de matar com um prazer tranquilo, num gozo avassalador de consumir a respiração ofegante dos homens na sombra, engolindo seus rostos como Saturno e inundando o mundo de sangue e horror (.)''. Igualdade. Nem uma grama de incerteza dentro de mim, para quem, ao contrário, Igualdade consistia na possibilidade ilimitada de reconhecer meus erros, reerguer-me humildemente e partir para o erro seguinte; alguém para quem parecia não haver eternidade bastante para se arrastar em tamanho experimentalismo, espojando-se em uma solícita mortalidade. Mas para o segmento médio da sociedade (sejamos honestos: quase toda ela ) sempre houve inveja e adoração perante o poder de matar impunemente. Esse é um sentimento pouco confessável que habita os porões imundos do inconsciente humano, lá onde uma rebanho de sociólogos adora falar sobre isso em artigos acadêmicos que ninguém lê. Adoram circunscrever historicamente, com notas de roda pé, o caso do Super-Homem nietzscheano testando as fibras mais íntimas de seu coração perante uma corte que se exaspera de seus atos, e que logo reaparecerá nos filmes de Hollywood transmutado num tipo qualquer de herói pós-moderno e cheio de dilemas que arrancam suspiros. O Cavaleiro da Fé capaz de decepar cabeças no altar de Deus. Quantas versões disso na cultura popular! Mas se você se encontra numa cama estreita, como eu, e ainda por cima coberta por recortes de jornal, deixando-lhe apenas uma justa largura para receber-lhe imóvel, o fato é que por mais que você se vire de costas, e depois de bruços, e assim por diante, sua cabeça ficará sempre no mesmo lugar. Digo: à menos que você se incline... e eu sem dúvida me dou a esse trabalho , sobretudo quando penso que a classe-média nunca foi capaz de chegar a um padrão independente de honra. Nunca chegou a um padrão independente de Cabeça; e assim, consequentemente, nunca pôde resistir ao ''glamour'' inconsciente dos aristocratas decepadores de cabeças. Hoje tem que se contentar com uma ou duas trocas de carros por ano e movimentações bancárias que lhes proporcionam um vago sentimento de que talvez não sejam meros animais . Tendo falhado em criar uma vida espiritual própria, seus cérebros tornaram-se, historicamente, essa massa escurecida e encharcada de ressentimento que é tudo que lhes resta do ar e do céu. Dedicaram-se a uma expansão material vazia e deram de cara com um desastre. Aí está uma observação curiosa que pode se prestar a desenvolvimentos férteis. Quanto mais desencantado o mundo, mais ele se presta aos meus desenvolvimentos . Aí está de novo ! O racionalismo instrumental, a instrumentalização da linguagem, apenas ajudou a classe-média a decorar suas casas com objetos, os ricos a enfeitarem as plantas de seus campos de golf com clips coloridos, mas não os ajudou a impedir que seu último estágio de espírito e desenvolvimento mental fosse sempre pior que o anterior. E isso não aconteceu apenas no terreno da política: com seu léxico pseudo-científico e seu jargão utópico e utilitarista.Também a idéia de coordenar todas as políticas econômicas do mundo para resolver o problema da demanda global guarda relações com esse dar de costas e fechar a porta de casa, testando -a depois para ver se ficou bem fechada. E agora o quê? As redes sociais? Sempre me disse que não bastava às pessoas sofrer, precisam ainda da insuficiência do amor, da amizade, dos furores e demências felizmente numerosos demais para serem enumerados da existência humana; nela incluídos seus crânios e caixilhos; o uso da política fiscal para estimular a produção; a esperança, a promessa de empregos acompanhada de austericídio e impostos; e tudo mais que, com muita precisão, impede a felicidade de ser pura, passível de materialização em brilhantes e abstratos textos de jornal.E já se viram inclusive em demasia esses rigoristas não terem paz até descobrirem que seus sarcomas estavam no piloro e não no duodeno. Esses vôos para os quais não tiveram asas. Pouco afeitos à razão pura! Preferiam sofrer mutilações intelectuais extensas à deitar de comprido num lugar selvagem e sem limites e passar o resto da vida numa imobilidade total do corpo. Talvez até de superfície, num modesto começo, mas que, aperfeiçoada, poderia lhes conquistar a sensibilidade e o entendimento. Sou eu quem digo isso, sob o império de uma necessidade furiosa: a de deixar o lugar do cérebro limpo e não ter dentro dos olhos nada senão um pouco de energia psíquica visível livre de parasitas. Sem ser capaz de ir tão longe (sou eu quem digo, de novo !) tudo simplesmente se embaralha dentro dos olhos, e não serve para nada.
10
Eu andava pelas ruas, agora, mergulhado numa cor azul-escuro que provinha dos postes. Andava rapidamente, encurvado, e parecia-me que o efeito da leitura na minha mente deixara tudo à minha volta novinho em folha. Primeira parada: o ônibus na 86 th Street até a Second Avenue, obrigado a pegar um táxi. O West End estava muito escuro e minhas pernas cansadas. E Greenwich Village, pura agitação e fumaça, mas com a expectativa de ver as pessoas se dirigirem amigavelmente à mim, mesmo que só para pedir. Algum nexo entre exasperação e não pensar. O transeunte filosófico passando na Broadway, depois. As exigências de tempo e espaço de horas de leitura na cama dando conta ''in loco'' do fenômeno. A alma da América e seus problemas históricos, lutando com impossibilidades certeiras. Era só dar uma olhada em volta para perceber que os americanos não podiam viver sem uma política monetária autônoma, com régias exigências. E se você toma alguma coisa na rua, e experimenta a violência de um estado extático súbito, tem ao mesmo tempo (dentro dele) vontade de agir; de combinar a taxa de juros atual com a política fiscal adequada, ciente de estar construindo um centro de perversão capaz de criar interesse à sua volta, como uma dupla de criminosos sexuais acorrentados à cama. Todos nos divertimos então com o bom humor que prega o controle dos movimentos de capitais, essa coisinha dolorosamente doce e muita estranha. No meio de uma conversa com alguém , no bar, de repente não presto mais atenção nenhuma. Cito versos. Naquele momento, NY me parece parece terrivelmente pequena, a Eternidade não me basta. E no plano de fundo dessas dimensões imensas da vida interior, da duração absoluta e do espaço incomensurável, instala-se em mim, definitivamente, um bom humor metálico, andrógino e à prova de balas, que me parece um motivo ainda maior para seguir na rotada loucura, Eternidade adentro. A magia dos extremos, eu me repito. A sensação de que tudo isso é luminoso vem acompanhada da desconfiança de que a democracia representativa não serve para muita coisa, e de que a loucura do mundo é apenas uma variação muito diminuída e barulhenta da vida espiritual. De que a mudança no comportamento dos poupadores não deriva da preocupação com o futuro, mas de uma forma anti-teatral de apresentar-se em cena com dinheiro no bolso. De que o Quantitative Easing e os juros negativos persistem debaixo de um poderosíssimo sentido do que é bom e normal; de que algumas afeições teóricas podem ser preservadas da fogueira das vaidades intelectuais, e algumas obrigações simplesmente cumpridas à risca, se você passar de súbito para um lugar com vista dos andares superiores em MT. É extraordinário, mas o aumento da renda não levará a um aumento d as exportações maior que as importaçõe . Com a Demanda Global esgotada ao máximo, inventaremos outro jeito de viver. O dia amanhece e as pessoas surgem prontas para abrir as lojas, varrer, embrulhar, pagar, lavar, vender, consertar, dirigir, estocar, contar e vigiar computadores por horas a fio. Tanta consideração pela ordem, no entanto, não sobrepujará o mistério; seguiremos todos inclinados a conduzir nossas vidas, não de um jeito propício a resolver problemas, mas a criá-los. A classe trabalhadora ainda consiste num enorme reservatório de ódio. Os empregados presos num ponto qualquer achando duro perdoar os que vão e vem, em liberdade de movimentos. A elite extraterritorial em aviões sobre nossas cabeças e o burocrata acordando feliz sempre que algum desordeiro aparece morto. Ninguém totalmente desprovido de vaidade, afinal. Presunção, certo (?) O que é que vejo na Broadway enquanto espero o ônibus ? Um instinto teatral, independente de classe e poder aquisitivo, em todos os tipos humanos ali representados. Visões sem nenhuma modéstia em relação a si próprios. A revigorante não sei o quê de fulano ou siclano. Veja que os homens de negócios hoje em dia são imitados com paixão, com estética facial e automotiva inclusive. No presente nível de visão crua do mundo, os espíritos agitados se debatem, buscando fugir da visão da própria espécie. A fim de poderem servir à suas imaginações com uma distinção especial, parece essencial ao ego de todas as pessoas serem atores. Esse tipo de loucura sempre foi a escolha predileta da gente civilizada que se prepara o tempo todo para um simulacro de ação nobre. De um instante para o outro, tudo fica repleto de possibilidades na cabeça das pessoas; e se alguém liga um holofote em cima, tudo se movimenta ainda mais magicamente, tudo é ''iminente'' o tempo todo. O drama é de certo conduzido da forma mais simples disponível, para conduzir a idéias mais altas. As ondas da ilusão narcisista permitindo à maioria de nós ficar satisfeitos com isso ----- de que nossas vida são tudo, menos ''isso''. Essas formas menores de loucura privilegiam o desejo e a disponibilidade como ''fins mais altos'', mas dificilmente estes aparecem algum dia. No famoso caso do ''Gigante Excluído'' ou do iniciado em mistérios antigos, a representação é tão perfeita que o ator se depara, ao final do espetáculo, com os limites reais da linguagem; aquele que de fato tornara-se lendário, em função de uma representação e dramatização superior, criando uma verdadeira mitologia à sua volta, entra, de fato, na ''matéria'', ou antes nos ''índices da matéria'': a palavra. Essa matéria lenhosa da língua que, como num sonho, silva além de toda representação e faz-se luz. O homem inspirado faz então com a linguagem o que Einstein fez com a matéria, descobrindo suas energias latentes e expondo suas radiações.
11
O K. da alta sociedade descendia de uma espécie maluca que ia enfiando suas formas telepáticas nos lugares sem pedir licença, projetadas por uma causa muito mais profunda que sua suposta loucura. A loucura mais como máscara (persona) para fixar um rosto qualquer diante de tantas eternidades e infinitos. A loucura era apenas o veredicto parcial dos médicos da sociedade decepcionados com o resto dos homens, por não disporem dos poderes do louco ----- os poderes elementares. Oh, homem atordoado ! Eu nunca havia disposto senão de minhas próprias forças e meios para ir da manhã à noite e depois da noite à manhã sem ferir-me mortalmente nas armadilhas psíquicas da Incognosfera. Os trabalhos de variação infinita da linguagem nos quais eu havia me empenhado haviam revelado o Daimon na minha consciência, e tudo agora se passava como se eu não fosse mais o verdadeiro senhor dos meus movimentos, mas antes o resíduo pegajoso e eletrocutado deles. Assim como os cromwellianos haviam sido o resíduo pegajoso dos profetas do Antigo Testamento; e em 1789, os revolucionários franceses haviam sido o resíduo eletrocutado da Roma Antiga. Apenas o proletariado testara fazer uma revolução sem imitar ninguém e logo tudo deu mais ou menos errado. Não que eu estivesse dopado por recordações históricas, mas naquele momento, caminhando pelo antigo Primeiro Distrito de Newark, me lembrava com ternura genuína do Banco D´Áuria, na Sétima Avenida, onde haviam aberto um crédito para B. Mussolini antes de estourar a Segunda Guerra Mundial. Fay me contara que quando o Duce invadira a Etiópia, o padre da Igreja Santa Lúcia fizera soar os sinos loucamente durante meia hora. Aqui na América, no Primeiro Distrito de Newark. Fay voltara a me visitar no meio da semana, e contestou veementemente minha postura. ----- Como você é leviano (.) -----, ela disse. Certo: leviano o bastante, tanto quanto qualquer homem, em relação à ''originalidade'' dos próprios atos, para me dispor a fazer o ''curso de atualização em casamento'', no módulo ''Amor à luz da Revolução Mundial'', que ela sugeriu para o final de semana. ------ Não teria nos servido para muita coisa (eu disse) Para quê reduzir meu ritmo , se para voltar à região plana da mente não tenho nem sequer que me levantar para manter-me em pé e equilibrado (?) , se ali posso ir e vir em qualquer lugar do mundo , à maneira de um grande cilindro dotado de inteligência e vontade (?) , Nunca tive um ponto de apoio tão firme quanto esse (!) ------, concluí. De fato, eu não era mais uma presença fugaz no mundo. Morava ali naquele quarto sozinho, o pequeno quarto onde escrevia e fazia as refeições, em meio ao meu caos de pequenas posses. Minha arte forçara, progressivamente, minha presença em todas as pinturas e sanduíches de realidade do mundo, querendo transparecer sob todas as formas possíveis e imagináveis. Não havia um pingo sequer de modéstia naquele jeito austero de escrever, que reduzia todos os outros à uma atividade periférica da inteligência humana. Escrita da espoliação total da realidade, desumana e autodestrutiva. Muitas vezes era dela que minha voz emergia como o vociferante bebê encantado no país da economia unissex, interpelando políticos surrealistas sobre filosofia e extras de Hollywood. Se o que viam era considerado bom, eu me adiantava e apresentava algo inconcebível. Se o que viam eram considerado inconcebível, eu me adiantava e apagava suas mentes com mágica. Não devia ter muito tempo (eu disse à Fay) que revi e controlei tudo, procurando agir e falar apenas de maneira mítica, saltando a parte dos diálogos demasiadamente humanos. Vivia agora eternamente prisioneiro de uma grandeza sem modelos, contrariando o plano inicial. Algo inconcebível, eu dizia à ela. Ainda não tinham arriscado a pele assim para alcançar a coisa em si. Sempre contentaram-se com símbolos, os delicados. Não foram capazes de ir até o fim e liberar as qualidades mais altas. E ela estava o tempo todo lá, tão perto deles quanto suas jugulares.
12
Continuo agora de memória, e está escuro. Estou deixando passar a noite de novo. Agora que a ciência está madura, eu me pergunto porquê ainda existe filosofia no mundo. Uma rápida reflexão sobre o conhecimento que temos das coisas, enquanto me desloco até a janela para fumar. Bah, mas tudo isso são suposições. Bonitas, talvez, mas uma vez que se fuma, a filosofia se instala na Cabeça. Ela está no sentimento infecto de piedade que experimento diante das coisas, sobretudo as portáteis, de madeira e jornais picados, que me fazem desejar tê-las comigo e guardá-las no bolso, não tendo eu evoluído muito no terreno das paixões humanas. Ao acaso dos meus pequenos deslocamentos no escuro, do deslocamento da minha Cabeça, opto claramente por uma outra relação com as coisas; um outro de tipo de conhecimento, do qual a ciência nos privou, sobretudo na relação da Cabeça com o espaço. Essa é a primeira deixa que aproveito hoje para insinuar bem de leve algo que quero dizer há muito tempo. O RETORNO ! Não o Eterno, mas aquele menor, dos dados dentro dos olhos. Pois os dados imediatos não estão imediatamente dados. A crítica da Rússia à retórica diplomática de Washington é coisa bem distinta de psicologia. Embocam-lhes papa vitaminada nos discursos para deixarem-lhes com um genocídio fritando na mão. Negociações equivocadas em todos os aspectos. Por outro lado, os Estados Unidos são uma unanimidade diplomática há décadas por serem previsíveis o bastante para transparecerem algum valor confiável. O silêncio da China sobre certos assuntos às vezes é tal, que o país parece estar desabitado. A diplomacia moderna se resume num jogo de consórcios que emitem vagas ordens, que podem ser cumpridas ou não. Dos dois lados, dois movimentos que se distendem e se põem ao exterior de si. Não que eu queira usar isso para chamar a atenção sobre mim, mas para outro barulho que não o das coisas. Por isso tento falar suavemente, andar suavemente, sempre, como convém a alguém que não tem nada a dizer nem sabe onde está pisando. Nessas condições, prefiro não me fazer notar: um movimento da Cabeça que tende a se congelar em meu pensamento, no resultado que o interrompe; e outro movimento que retrocede, reencontrando no pensamento o movimento do qual ele resulta. Assim é que corro sempre o risco de me perder a cada repouso, a cada respiração. Em todo caso, não gosto de gritar, nem de apontar o dedo, em acusação. Digo apenas uma pequena parte das coisas que me vão pela Cabeça. Assim eu me reencontro aos poucos, retomando-me numa tensão gradual. Fumo, abro e fecho os olhos. O escuro é uma vantagem em certo sentido. Ele não aceita bem nenhuma mentira, nem se compõe exatamente de instantes; os instantes são apenas suas paradas virtuais; seus (meus?) pensamentos e a sombra dos meus pensamentos. O Ser não se compõe como um Presente. Aliás essa questão nem se coloca. Direi apenas que os instantes e os pontos não são segmentados e basta! Basta sobre isso. O espírito e a matéria. O escuro e a matéria. A matéria e o pensamento. Tudo enfiado no tempo de duração de um cigarro, inclusive a Rússia, a China, os países em desenvolvimento da Ásia e o Banco Asiático de Desenvolvimento. Um SOB o outro, e não um DEPOIS do outro. ALGO ao invés de NADA. Mas para quê tal tensão ? Me falta ainda um pouco de calma, enquanto fumo. Ao invés de diluir meu pensamento calmamente, o escuro concentrou-o dramaticamente no Indizível, obrigando-o a seguí-lo mais uma vez até a fonte do qual emana. Anamnese. Me pergunto porque essa necessidade de ação do pensamento. Estou ficando nervoso.. . agora vejo o raio particular que conecta o pensamento à Deus. A julgar pela sua aparência, não. Não o quê ? Estou pondo coisas muito diferentes sob uma mesma palavra. Nem uno, nem múltiplo, mas aquilo que difere de si mesmo, eternamente, por uma certa tensão do pensamento. A intuição intelectual é o método que busca essa diferença em movimento constante, nas ''articulações '' da realidade. É o mesmo que saber se orientar bem nos complicados enredos dos romances vitorianos, aquele misto eternamente mal analisado da literatura inglesa. Somente a tendência é pura, afinal. Essa vibração ocupa ainda vários instantes. Sinto que posso recitar de cor todos os personagens de Tropolle, mas continuo ignorante da sociedade e dos afazeres cotidianos. Minha Cabeça decompõe o espaço em matéria e tempo, sem imaginar o que isso significa. Diferencio-me do mundo apenas pela contração e a distenção do pensamento. Estou no princípio da matéria, nadando eternamente vitorioso nos seus ''índices'' mais inacessíveis. Todas as linhas de fatos e diferenciações me pertencem, e todas as convergências de probabilidades. Axis Mundi. Corto, Recorto. Picoto e aí está: Recuperação da China estimulando a economia dos vizinhos. 5,9%. 6,6%. 6,7%. A essência do impulso vital é desenvolver-se em forma de feixe, atualizando direções divergentes. Nada muito bem sintonizado em termos psicológicos. Antes, credulidade temporária e confusão. O mundo atual vive tudo em termos pessoais, inclusive suas contradições. O único jeito de corrigí-lo é não existir. Um trabalho xamânico. Não é (em definitivo) política ---- é vida particular. Um esforço de ''artiste''. Um desafio para os ânimos ocultos. Tudo é mudança de energia, variação e tensão, nada mais. Se pusermos todas as coisas insuportáveis do mundo numa coluna, traçar uma linha embaixo dela e somá-las, o resultado será algo ''totalmente insuportável''. Mas, se em lugar de pretendermos somá-las, instalarmo-nos nelas por um esforço de intuição, teremos o sentimento de uma certa tensão bem-determinada, talvez sufocante, mas cuja determinação nos parecerá antes uma escolha.
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Sally pensava que desviando a conversa para uma direção teórica (o caso do psicótico criativo) diminuiria a entumescência de nosso verdadeiro assunto: o estado de exceção efetivo. Ela segurava o cigarro entre seus dois dedos cruzados diante do rosto e suas ações, habitualmente tão graciosas, advertiam para a chegada de um peso extra insuportável nos nossos nervos. ----- Das judgsten Tag (!) (ela disse) Juízo sumário (Strandrecht): Juízo Final (!) -----, e sacudiu a cabeça, avermelhando-se. ----- Ah (respondi) problemas emergenciais. Já advinhava qualquer coisa assim: o tempo do Messias tem exatamente esse formato ''legal''. Tanto a Shari´a Islâmica quanto a Halakah Hebraica envolvem um pouco de filosofia política. Com o Apocalipse de João não poderia ser diferente. A Filosofia e A Lei (.) Ninguém escapa . ----- , concluí. Era-me difícil compreender o motivo real do nervosismo de Sally. ''Talvez '', eu pensava ''porque ela se apegara demais à certos privilégios que de maneira alguma estavam garantidos na Lei. A perda imediata de tais privilégios também estava na base do drama barroco alemão. Ela vivia dos juros de alguns milhões de dólares isentos de taxas e impostos, e isso estava atrapalhando sua evolução espiritual. Não cansava de lhe repetir: ----- A regra vive só na exceção. Debaixo da terra talvez. Não se pode vê-la a olho nu. Da minha parte, só represento o pequeno Éden que você insiste em ver em mim para quem aprecia o gênero decomposto da linguagem, sem saída para frases feitas e pontuação comum. ''Legalmente'' fora das leis gramaticais. Legalmente fora da Lei. O caso normal não prova nada nunca . Mas a exceção prova tudo, convence à todos. Segundo o étimo ''ex-capere'', antigo termo latino para ''exclusão''. Só é possível manter-se em relação com tal linguagem sob a forma de suspensão. A norma, aqui, se aplica à exceção ''desaplicando-se'', como no conceito-limite da teoria - jurídica, de que um Soberano se vale para decretar o ''estado de exceção. '' (.) -----, eu disse. Sally tinha aquela carnação especial da mulher pública constantemente vista; atração e talento sexual: volupté, numa palavra. E me fazia recordar o vocabulário francês que eu aprendera lendo Rimbaud no original. Aquele livro a respeito do Inferno. Une Saizon. .. e aquela Sally apetitosa ali na minha frente também representava alguma coisa infernal. Volupté, seins, épaules, hanches; Sur un lit de feuilles. Cette tiédeur satinée de femme. Muito bom , Zolá! De fato, pomares sofrendo durante tremores de terra certamente derrubariam suas peras e maçãs. Algo que eu compreendia até com certa simpatia, mas procurando ainda identificar o que faltava para a felicidade de Sally. O direito, talvez, eu pensava, ao ar livre ?? Mas em qualquer tempo, ela estava sempre envolvida em dificuldades de índole, que muitas vezes lhe causavam um terrível sofrimento; de manhã até a noite tropeçando em obstáculos invisíveis criados pela sua própria imaginação, esse mato rasteiro que parecia lhe estender galhos e moitas para envolvê-la e escondê-la de si mesma. Vistas soberbas de todos os lados do Inimigo lhe faziam pensar se, por acaso, sua ''volupté'' não era, afinal, sua própria ruína, uma carga muito dura e penosa para sua alma de mulher. Eu a via como uma mulher presa numa alcova: ----- Gosto muito de você pelo seu temperamento suicida . É um sintoma suicida enfrentar de forma tao aberta um Demônio que te domina tão facilmente. Que domina seu trabalho tão melhor que você. Um dos mais antigos preceitos da Sabedoria Tradicional Chinesa diz que: ''Nunca devemos enfrentar o Mal diretamente, pois ele sempre encontra meios de se defender '' (.) -----, eu lhe dizia, apiedado. Convidado por ela, ali eu me encontrava, em sua casa, perplexo, assistindo o fundamento oculto da Lei vir à Luz de forma devastadora. Ainda assim, eu achava indispensável que ela soubesse tudo o que estava acontecendo na América, mas sem muitos detalhes. O mínimo de perseguições e punições, de preferência. Apenas o canto dos pássaros e nenhum contato humano fora eu, que só pedia, no entanto, para vê-la o menos possível, enquanto ela estivesse naquele estado, pois minhas faculdades de memória e reflexão estavam sendo golpeadas por um vento muito forte. Nele, minha mente fluía totalmente nua e desimpedida, como um surfista. Era uma experiência religiosa de culminação. Estava o tempo todo sendo restituído à condição originária da Mente Cósmica pela experiência direta do Bem e do Mal. A Árvore do Conhecimento viria abaixo na forma da HALAKAH, a glória da Torá originária estava sendo restaurada e o rosto da Lei, logo logo, mudaria completamente. ----- Sempre haverá certa dose de desespero sublinhando seus pequenos prazeres (eu disse à ela) Essa é a Lei. Uma vez descumprida, o que te sobra são seus próprios restos peguentos: frustração e insuficiência. A morte sentada dentro da cápsula da saúde; a Escuridão acenando sob o sol fraco da utopia. O Avatar não vem ao mundo apenas para abolir a antiga Lei , mas para abolir a própria HALAKAH, ao culminá-la. Ele é como o pequeno deslocamento de uma placa tectônica gigantesca, mas composta de letras. A Torá originária não é um ''texto'', mas a totalidade possível das combinações do alfabeto hebraico. Você ainda está zangada comigo ?? ------, perguntei. Naquele momento, eu tinha o aspecto imparcial de um técnico fazendo um trabalho estatístico sobre mísseis balísticos para o bloco do Congresso que votou contra o acordo com o Irã. Na expressão de Sally subsistia alguma coisa grave, sem traços de infância feliz. O último olhar dela para mim, antes de voltar afalar, deixou-me admirado. Os lábios entreabertos, a testa franzida, a própria pele exprimindo completo abandono da pessoa original. Mesmo assim, seus olhos não desistiam de sua aparência erótica, adquirida mediante certas características de negritude sexual, como nas comédias americanas. ----- E você descobriu o quê, de tão importante (?) -----, perguntou-me ela. ----- Que o rabino Elyhau Kohen Ittamari, no século XVIII, já havia prescrito a Torá como eu a entendo: escrita sem pontuação ou sinais vocálicos fixos; formulação semelhante à do fundador do chassidismo na Polônia, Ba´al Shem : ''A Torá é mais do que uma mistura incoerente de letras para aquele que chega a dominá-la. São combinações que formam o ''Nome Vivo'' de muitos acontecimentos por vir . Algo muito diferente da clarividência comum. Restitutio in integrum... É isso que faço agora. Quase um divertimento sexual. Uma tensão que não se apaga nunca. Rumo à alegria negra de passar sempre só e vazio para outro lado e voltar bastante ''atualizado'' sobre tudo, se é que me entende. Estado pleromático da Torá (.) -----, eu disse.
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A neurofisiologia parecia estar de acordo com Aristóteles a respeito daquele ''caso''. ''Aquilo '' (Anna me explicou) eram paparazzis, e traziam consigo três moças vestidas na última moda. Diretamente da Carnaby Street ou da King´s Road: botas de cano longo, minissaias e cílios postiços. Anna, ao meu lado, era capaz de convencer à mim e à si mesma quando aquelas coisas eram sentidas. A falta de luz em frente à entrada do evento indicava que chegáramos atrasados, e a escuridão punha em função em nossas retinas uma série de células periféricas ditas off-cells, que produzem a auto-afecção do escuro. Mas eu queria jantar em casa e não ali, quase não podia perdoar a exigência dela naquele momento. ----- Sou uma atriz em início de ''Kariera'' e preciso ir onde estão os holofotes (.) ------, ela disse em russo, ou polonês. As trevas (eu pensava) como a ''cor'' exata daquela visão em potência, nos olhos deslumbrados dela. Amorphon e sem-figura, dizia para mim mesmo (consolando-me) que não poderia existir Mal maior que eu num evento tão chique. As roupas de todo mundo pareciam saídas do mesmo baú midiático, e as caras das celebridades indicavam o de sempre: que não tinham a menor idéia de quem eram, nem de onde estavam, mas que era preciso sorrir e ser o mais gentil possível. Quando desligassem os holofotes, não lhes restaria mais nada além de medir as consequência psicológicas de suas vocações anfíbias para o simulacro. A profilaxia do sex-appel profissional prescrevia estar (necessariamente) um pouco amedrontado em qualquer situação: digo, de perfil , de frente ou de costas. Atenção total ! A fama era um veneno mortal ! Mas fingir um pouco de amor pela humanidade com um sutil golpe dos olhos sugeria um alto grau de maestria. Havia, no entanto, mais coisas estranhas acontecendo ali dentro , além do óbvio. Era uma mansão de aspecto muito civilizado, até onde me lembro. Sua beleza decorativa, seu evidente conforto, sua aura discreta de intimidade suntuosa e a serena harmonia estética de um milhão de detalhes ---- modificaram meu ânimo arredio para melhor, assim que pisei mais profundamente dentro da festa. Não me lembro até que ponto segui os passos de Anna . Uma fumaça aromática subia do piso de mármore veneziano, em meio à relativamente poucos ruídos além da música. Uma única e mesma natureza se apresentava a mim ora como luz ora como treva. A Physis anônima por trás dos rostos conhecidos, tão capaz das trevas quanto da luz. Metafísica do Diáfano aristotélico transformado em misticismo póstumo na ciência medieval (est de ti diaphanes) Surgindo da luz viva dos corredores e portas entreabertas para dentro da luz amortecida dos holofotes. Eu já estava falando sozinho, àquela altura. Alguém colocara um drink na minha mão e eu não parei mais de beber, andar à esmo e falar sozinho durante muito tempo. Eu era o antropólogo fazendo seu trabalho de campo na floresta; o drink era meu bloco de anotações. ----- Imagino que o Sr. ainda não se pronunciou a respeito dos gastos militares, depois do último bombardeio em pleno cessar-fogo (.) -----, alguém me perguntou. Mas tudo o que eu podia ver eram cabeças e ombros formigando na minha visão, como num microscópio. Obviamente, reconheceram-me e vieram me importunar. ---- O local que o Sr. mencionou ontem já foi bombardeado previamente, na semana passada (.) E então (?) -----, sugeriu outra voz. Dessa vez, era aquela correspondente israelita, cobrindo o fronte da Síria. ''U$ 60 bilhões para a CIA '', escrevera ela no jornal outro dia: ''Não resta dúvida de que poderiam ter-se esforçado para conseguir um pouco mais para a Segurança Interna. É na mão dela que explode tudo depois (U$ 60 bilhões) ''. Eu era o antropólogo órfico visitando a Acrópole oficial. To de phas hoion chroma esti tou diaphanous, hotan e entelecheia diaphanes . Mas quando ouvi a voz dela de novo falando em guerra e bombardeios, larguei meu drink e fui procurar Anna . ----- Só um bilhão de dólares para a educação mundial ? (eu disse para Anna) Mas ninguém mais acredita que a educação possa salvar o mundo. Pensamos em termos práticos, sem esperança de contra-partidas exitosas de nenhum lugar do mundo. Abrir o mercado de ações para o Fed pode fazer disso uma ferramenta eficiente para se debater em tempos de turbulência mundial, e mais nada. A escassez de bônus soberanos na Europa obrigará o BCE a instrumentalizar sua política monetária no mesmo sentido dos Bancos Centrais do Japão e da Suíça. A Autoridade Monetária tem razão. No eco-sistema das cifras orçamentárias, órfãos e bichinhos da floresta não passam de um miserável fundo unificado dedicado aos candidatos a receber ajuda. Eles que esperem ! Nossa paciência com dinheiro anda baixa. Ainda mais se os preços do petróleo não se firmarem no terreno positivo, como é de se esperar. As bombas continuarão caindo do céu, em todos os sentidos. Mas do lado de cá, nosso belicismo americano nato está correndo o risco de ser arruinado por essas garotas bobas, com suas perguntas de malhas colantes (.) -----, eu disse para Anna, olhando para seus cabelos. A cor do Diáfano em ato. Descontraído, eu andava com ela pela casa. ----- Você também passou a apostar mais na Paz e no Desenvolvimento Sustentável, de ontem para hoje (?) -----, perguntei-lhe. Ela achou minha pergunta curiosa. Estava escuro ali. Skotos. Mas também outra coisa para a qual não há um nome, que sugiro chamar aqui de Diáfano, exigia de Anna, naquele momento, uma longa resposta. ----- U$ 900 bilhões para Defesa (?) U$ 160 bilhões para os veteranos ?? Mas o Irã e Israel também desperdiçam boladas monstruosas com isso. Até a Arábia Saudita, onde todo mundo é funcionário público, e está arruinada por causa do petróleo, investe massivamente em armamento pesado. A corrida armamentista imaginária é um mercado cognitivo. Os Estados Unidos, pelo menos, fornecem boa parte das armas que esses povos compram. Nesse meio ninguém tem tempo de ler Proust, como eu e você, mas redigem como ninguém relatórios técnicos para provar que a modernização de Israel foi rápida demais para os Árabes . Como a perniciosa democracia ocidental, os corruptores miasmas do estado de direito, tornaram-se uma ameaça para a apaixonante cultura árabe. Situação parecida com a da alta cultura literária e os almanaques de informação divertidas. Alguns são, de fato, bizarros e abstratos demais. Outros, no entanto, ainda apresentam uma forma reconhecível. Deus sabe como se mantiveram intactos com tanta inovação. Antigamente, por exemplo, eles traziam a previsão do tempo para cada dia do ano... acredita nisso ? Bricabraques astrológicos ornamentais caríssimos, boa parte vinculados aos hábitos de existências prazerosas no seio de regimes extremamente autoritários, duros, genocidas e armados até os dentes.Mas Proust nunca ! A aspiração humana de alcançar a realização artística mediante a potência do pensamento nunca teve guarida ali. E aqui tampouco. Os gastos com o Departamento de Defesa, que deveriam ter financiado a busca da pedra filosofal para a população de baixa renda, está destinada a alçar os Estados Unidos ao status de Estado Imperial decadente, desgastado em milhares de bases militares ao redor do mundo, carcomidas pelo tempo em guerras perpétuas. Muitas das quais, que não acontecerão nunca. Mas cuidaremos delas com nossos impostos, devotadamente. November 8. Aguardaremos os veteranos mutilados que regressarem vivos dos delírios governamentais. Levaremos muitos à lojas de artigos masculinos como o Barney´s e Via Vendetto . Mas os mais exaltados pelo patriotismo, que continuarem ouvindo estrondos e zumbidos no ouvido de noite, levaremos à estabelecimentos unissex. E os loucos perdidos e psicotizados, esses os vestiremos com camisas carmesim de seda e gravatas vermelho-berrante, mais grossas que uma língua de boi. Apresentaremos todos, no seu devido tempo, ao público americano em animados programas de televisão, como bichos. Para que todos mirem maravilhados a tristeza de seus sorrisos amarelos, seus olhos vazios, suas gargantas secas. Importunaremos todos com perguntas sobre morfina e a aridez dos desertos. Diremos: ''que prazer recebê-los aqui, em nosso programa (.)'', rezando para que não respondam em grego: ----- Energe monon dynasthai (.) -----, com seus olhos de relíquias assírias destruídas por robôs. -----, ela disse. Contive-me diante de tanta censura. Aquele era um tradicional começo de conversa judaica, fundamentada em secretas combinações de letras mágicas. Um mínimo vestígio de normalidade. Éftisa... Anna saíra muito nova da Polônia para tentar uma ''Kariera'' de atriz na América. Vestida naquelas roupas apertadas, cinzentas, saldo de uma deriva alucinatória no banheiro de seu lar, aos dezesseis anos, em verde e brique (inclusive botas de Chelsea que lhe subiam pelos tornozelos como cobras ). Com aqueles cabelos ondulados, longos, cobrindo-lhe os ombros e eliminado-lhe 70% do pescoço, ela estava, evidentemente, em busca de uma nova imagem da América, mediante a revisão do conceito de si mesma, em progressão geométrica. Work in progress. .. Nosso principal bem (ela sempre dizia) era a loucura e as línguas estrangeiras que aprendêramos sozinhos, catando piolhos em *** ---- em tendas de ajuda humanitária que até hoje... ---
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------ Ninguém pode dizer onde tudo isso vai parar. O primeiro sintoma de que uma pessoa se tornou um vidente não é uma vaga sensação premonitória, mas um estado de atenção refinado, que o eleva às alturas de domínio do mundo, onde as cenas que se sucedem parecem já ter acontecido inúmeras vezes (.) -----, eu disse à Anna. Falava inspirado pela força da arte divinatória. Falava para o mundo, voando de cume em cume, produzindo uma linguagem universal de pigmentos carregados. ------ Surgem imagens e série de imagens, cenas e situações que começam por suscitar um vivo interesse no vidente (e às vezes prazer) pelo fato de estarem acontecendo em tempo real. Quando finalmente grudam na retina, é inevitável sentir sono, pois não é possível dirigi-las identificando-se com elas (continuei) Nos momentos mais inspirados o espaço em volta parece dilatar-se, o teto inclina-se e surgem todo tipo de sensações atmosféricas e cósmicas: as paredes de névoa, a opacidade, a diluição do pensamento, a pesadez do ar, a levitação, indicam que seus meios cognitivos se concentraram num fantasma que, passando da sensação à imagem, despiu-se de seus elementos sensíveis e alcançou a ‘’denudatio perfecta’’ . As cores tornam-se luminosas, psíquicas, e a mente passa a oscilar entre estados oníricos e realistas, num vaivém constante que só pode ser dirigido pela audição oculta do silêncio. É no meio de certas frases que tudo isso ganha forma. O pensamento realmente perde toda sua forma de palavra e, muitas vezes, torna-se hilariante. O Êxtase é algo muito nítido (.) ------, concluí. Embora nossas roupas cinzentas fossem mais escuras que carvão, mais vermelhas que a doença, naquele pôr-do sol, e que nossos blocos de anotações parecessem duplamente mortos em nossas bagagens, depois de tantas horas de vôo, o carro que nos apanhou no Aeroporto Kennedy era um Sedan perfeitamente prateado. Pedi a direção ao motorista, e Anna sentou ao meu lado, no carona. ------ Gosto de dirigir -----, eu disse, lembrando à ela que há um dia , em Moscou, eu fôra obrigado à consultar um painel de controle só para sair do pátio rente ao Kremlin. Destino: Aeroporto Cheremetievo, a 40 km do centro . Agora, as auto-estradas novaiorquinas cumprimentavam-me como se eu fosse um glorioso astronauta, e Anna, uma modelo tentando a ‘’Kariera’’ de atriz em Hollywood, com dentes úmidos e brilhantes, num êxtase desesperador. Kariera e Extass. Palavras russas no meio da barulhenta epopéia imperial na qual flamejavam nossas cabeças fulminadas por raios , decididas a trabalharem juntas. ------ Pretende realmente estabelecer nossa atividade como um ‘’negócio’’ tão gigantesco (?) -----, ela me perguntou. Uma pesada mala de tecido grosso estava suspensa por cordéis no punho de Anna , e ela me dirigia uma careta cínica. Ali dentro, estavam as provas do meu novo manuscrito. ----- Sinto circular nessas páginas um frissom de infinito (ela disse) Um dispositivo teológico capaz de transformar qualquer nu artístico num protoplasto metafísico. Ideal tempestuoso brilhando em lábios queimados, aproximando as artérias da alma universal de uma pura funcionalidade biológica. Rever o Cinturão dos Jardins, em Moscou, me fez pensar no degelo stalinista e de como os tempos de revolução são desprovidos de esplendor literário. Isso transforma você (automaticamente) numa exceção de fazer inveja a muitos. Pois esses são tempos revolucionários, em certo sentido. Ainda assim, um incompreendido. Seu Sedan prateado como metáfora de uma torneira mágica: cabendo-lhe todo o poder de abri-la e fechá-la sem prestação de contas. Gozando de uma reputação colossal em vida, ainda assim, uma má reputação. Fora do alcance de toda miserável e aflita rivalidade, ao lado de sua formosa máquina prateada de fazer cifras com analogias. Bibliófilo e erudito escrupuloso, preciso como um rochedo ligado ao silêncio da noite, suas palavras colocam no papel questões tão graves que um século inteiro não será demais para tentar respondê-las (.) -----, ela disse. A luz n interior do Sedan, como os estofados cinzentos, acentuava o rosto de Anna. Os olhos claros nas suas imensas órbitas pareciam querer me oferecer um divertimento cortês, enquanto eu dirigia. Considerando o quão profundamente eu estava absorvido em minhas próprias ‘’questões’’, como ela as chamava, não havia como deixar de considerar a generosidade e a dificuldade que representava para ela conseguir exibir um sorriso para mim. Por outro lado, ela representava para mim a guardiã tenaz da nudez paradisíaca que eu adorava fotografar. ------ É muito comum (eu disse) que alguns de nossos sonhos de consumo permitam-nos entrever a ‘’possibilidade perfeita’’ em qualquer situação, sempre furtada no último instante. Respostas embaralhadas são as únicas caprichosas o bastante para cumular nosso desejo exasperado com a matéria em ebulição (.) -----, concluí. O carro, agora, corria na West Side Highway, acompanhando o Rio Hudson. Ali estava a água ----- como era linda (!) , mas também insidiosa. A luz da ponte espalhava-se sobre a água suavemente, brilhante e agradável.
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----- Criança (?) -----, ela me perguntou depois, surpresa. A impressão que eu tinha era a de que estava sonhando. Todo meu corpo agora latejava, caminhando pelo quarto. A luz da lua que atravessava a janela expunha a negra silhueta de Anna deitada na cama, como um musgo vivo sob a coberta. Eu a esmagara como um animal, ritimadamente, durante meia hora, deixando escapar da minha garganta sons confusos e desconexos, num êxtase que me pareceu ter muito sentido em relação às possibilidades mais comuns. O olhar dela, por alguns instantes, me fez lembrar uma cena de Guerra e Paz, na qual voltei a pensar assim que saí da cama. O general Davout, cruel como só ele, estava mandando diversas pessoas para serem fuziladas em Moscou, mas quando Pierre Bezukohv compareceu diante dele, eles se olharam nos olhos. Um olhar humano, simples, fora trocado entre eles e Pierre acabou sendo poupado. Tólstoi diz, nesse trecho, que ninguém consegue matar outro ser humano com quem tenha trocado semelhante olhar. E ao contrário do que a leitora possa estar pensando, era eu o Pierre naquela cama, e não Anna. O novo olhar que lançara sobre ela, mais tarde, fôra o ganho mais incontestável que eu poderia ter trazido de nossa estadia em Moscou, incluindo tudo o que sucedera. Pierre Bezukhov particularmente feliz, naquele momento. E como os personagens de Tólstoi, ao contrário dos de Dostoiévski, apenas me decidindo antecipadamente a ver em Anna o que eu queria ver é que ela se oferecia sem artifícios à minha visão. Tudo muito livresco, mas em relação ao que se passava na hora, também muito decisivo. Se eu tentasse ‘’decidir-me ‘’ de acordo com a crueza dos fatos, veria imediatamente esses mesmos fatos se negando à um acordo comigo. De Moscou, me lembrava agora, nitidamente, enquanto fumava na janela, de três ou quatro lugares onde eu avançara a passos largos na rua, sem aquela estratégia e aquela arte de empurrar e se encolher, que se aprende logo no primeiro dia ali. No trânsito, faróis giratórios de altos funcionários e outros políticos graúdos se permitindo abrir caminho em meio ao engarrafamento quilométrico. Quando chegava à avenida Stoleschnikov, eu respirava fundo. Ali, finalmente, podia parar , sem perigo de perder o fio dos meus pensamentos, diante das vitrines das livrarias e procurar o exemplar de Os Demônios em russo pelo qual tanto ansiava. Só o adquiri, no entanto, no terceiro dia de solvitur ambulando, após uma longa incursão naquele movimento sinuoso e arrastado a que os passeios estreitos habituaram a maior parte dos moscovitas. Que vida abundante , caótica a daquela artéria prestes a explodir ! Mercadorias, pessoas, barulhos e poluição irrompendo de toda parte. A selva de casas tão impenetrável que o olhar só se apercebia daquilo que o encadeava. A coisa mais rica que meu pensamento conseguia compartilhar com a paisagem, nas primeiras horas, era a lembrança livresca e teórica da Nomenklatura , simbolo da dominação de casta soviética. Hoje, o partido do Presidente Putin , criado por decisão dos dirigentes de Estado, coloca em prática no país a política que consideram a mais adequada, sem muita discussão, consolidando uma nova Nomenklatura totalmente leal à ele. Sublime !, eu pensava: Assim é que se consolida e sincroniza com eficiência a máquina política do Rússia Unida em todas as regiões do país, robustecendo enormemente o aparelhamento absoluto do Estado. Ou o aparelhamento do Estado absoluto, se preferir. Mas, na Rússia atual, o partido dirigente não é um agente político autônomo, como na antiga U.R.S.S., e sim um instrumento do poder instalado, exatamente como se pode ler em ‘’O Partido de Putin’’, de Vitaly Ivanov. Mas antes de descobrir a verdadeira paisagem de Moscou, antes de ver o seu verdadeiro rio; seu pathos e seu ethos, suas adesões coletivas ao Rússia Unida andando na rua, com seus cigarros e sacolas de compras; suas russas, o neoconservadorismo, Irina, a vodka, o Kremlin; antes, enfim, de encontrar seus verdadeiros pontos altos, cada uma daquelas calçadas da cidade foi para mim um prêmio disputado a tapa, ombro a ombro, em meio à poluição e acidentes de trânsito. E cada número de placa de trânsito era para mim um sinal esotérico, trigonométrico e indecifrável; e cada gigantesca praça desolada um enorme lago de gelo. A cada passo que dava na rua eu pisava num lugar com nome conhecido. E eu conhecia todos eles dos livros ! E quando surgiam-me tais nomes, logo minha imaginação construía todo um quarteirão povoado de coisas fantásticas totalmente inverossímeis à minha volta. Cada esquina juntava, no meu mapa da KGB, ruas que eu imaginava muito distantes uma da outra. O balé incessante dos rebocadores animando a vida do trânsito caótico da capital. Só um filme de Eisenstein poderia dar conta de todas as armadilhas topográficas nas quais eu caía, andando à esmo em busca do Kremlin. A Grande Cidade parecia defender-se de cada passo meu, mascarando-se com minhas antigas crenças revolucionárias. Percorria o círculo de Moscou até o esgotamento sensorial, em silêncio e fumando sem parar, admirado com a largura de suas fronteiras administrativas. A Grande Moscou e as novas áreas de anexação, duplicando a superfície da metrópole rumo às periferias desoladas do sul... Mas, logo, cones de luz à minha frente!, tão ofuscantes que ao passar por eles fiquei paralisado. Em frente ao portão do Kremlin, todas as cores de Moscou convergiam num prisma, no centro do poder russo. Os feixes de luz dos faróis dos carros ferindo meus olhos, enquanto eu pensava: ‘’Meu Deus (!) Tenho só trinta e quatro anos e já li tantos livros quanto Marx (.) ‘’. E corvos. Ou pombos, sei lá. Anna me esperando no hotel, bêbada. Os Demônios, de Dostoiéviski (em russo), debaixo do braço. Grandes dilapidações de forças psíquicas e dispêndios de energia sexual evocando em mim terríveis festas primitivas. O olhar infinitamente mais ocupado que o ouvido, naquele momento. O mais insignificante trapo de cor brilhando poderosamente à luz do crepúsculo esverdeado, indicando que aqueles velhos pavimentos escondiam livros ilustrados, doutrinas atéias e materialistas, diabólicos assassinatos políticos e o tremendo poder da vontade de um povo. Eu nunca gostara de Trotski por causa da repressão comandada por ele ao motim anarquista dos marinheiros de Cronstadt... Mas, na ocasião , não tinha muito o que fazer com minhas análises e escolhas, imagens e velhos lances teatrais de orientação política. Eu era todo elegância reverencial e amplificação contemplativa, dentro do meu sobretudo, como se o termômetro não estivesse marcando 25 graus abaixo de zero.
----- Naquele dia (eu disse à Anna) no Kremlin, todos os planos da minha mente estabeleciam limites muito claros aos sobressaltos da minha imaginação. Um inseto humano opondo-se à um gigantesco universo dado à reviravoltas súbitas. Encerrado em uma solidão lógica, fotográfica (.) -----, concluí. Ela ainda mal havia se movido na cama. Voltei para lá e mergulhei nela de novo, ao ouvir seu murmúrio, na mais insólita das circunstâncias. Os pés dela, a certa altura, se apoiaram nos grossos tapetes do chão. Nova York ---- A Grande Babilônia ----- me dava febre, me enchia de vaidade. Anna era só curvas: lenta, passiva, letárgica.
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----- O homem tem uma natureza moral, Anna (eu disse) E certas anomalias só podem ser resolvidas pela loucura, por delírios nos quais as ilusões da consciência são mantidas de forma sistemática, em estados de insanidade semelhantes às formas modernas da administração de empresas, fazendo disso um ''trabalho governamental''. Nesse mesmo mundo, o estilo de decoração de nossos apartamentos tem de ser obrigatoriamente pequeno-burguês, para fazer jus ao estado de nossas consciências morais: quadros nas paredes, almofadas nos sofás, cobertas sobre as almofadas, bibelôs nos aparadores e vidros coloridos nas janelas (.) -----, eu disse. ''Meu Deus (eu pensava) E ainda tenho que ficar enchendo essa desmiolada Anna com os altos ideais de minhas profecias críticas. Ou ela ou eu havia se tornado delicado, ou melhor, etéreo demais para a vida terrena. Certo: era eu quem havia me tornado absorto demais em assuntos universais, dos quais ela passava a maior parte do tempo excluída, tentando me imitar. Assim, por mera histrionice, seus pensamentos se tornavam para mim campos de batalha pelos quais passavam um ataque sempre vitorioso contra o que havia de mais etéreo em mim . Uma miscelânea constritadora, sem me deixar margem de escolha, a não ser aceitar sua dominação. Ela desejava implicar-me na carne obcecada de suas manobras psicológicas e trazer-me de volta para manter-me nesse mundo ao seu lado. Que mundo ! que mulher ! O enaltecimento que eu extraía de uma tal situação servia, além de tudo, para colocá-la nas alturas pelas quais ela tanto ansiava. De tudo isso, resultavam feitos de cultura inacreditáveis, saídos da melancolia em que a situação me mergulhava. A biliosidade de nossa relação transformava minha ''zona de conforto'' intelectual num processo radical de luxúria e ''kultúrni''. ----- Kulturnáia, palavra mais apropriada para o termo russo '' kultúrni''. Expressão de uma realidade mais alta reclamando de nosso ''byt'' seus direitos de forma tão absoluta e intensa em cada situação concreta, que eu facilmente compreendia o fatalismo da alma russa, de Pushkin à Soljenitsin, passando por Dostoiévski , Tólstoi e Tchekov. A Rússia , até hoje, só produzira escritores fatalistas. Os maiores de todos os tempos. Nem na capital da Rússia era possível encontrar uma forma de sensibilidade mínima ao valor do tempo, apesar de toda a racionalização histórica da política e do militarismo. Poderia dizer inclusive que os minutos, para os russos, são uma overdose que nunca os satisfaz, que eles ''se embriagam com o tempo '', como dia o poeta Charles Baudelaire (.) ------, eu disse. Naquele momento, Anna poderia cair de joelhos e rezar pela minha atenção, que eu não daria o braço a torcer. O roubo do meu meu tempo, para mim, era sempre um roubo real e insuportável. É certo que mesmo um homem dominado, tornando-se criativo, pode enfrentar qualquer obstáculo de dominação, mas no fundo de mim mesmo havia um campo liso, um plano de deslizamento onde muitos caçadores, com intenções contraditórias, estavam disputando meu tempo como quem disputa a última coca-cola do deserto. Diante de Anna e seus contorcionismos, de suas manobras, eu era uma força da natureza incontrolável sendo submetida à um teste de aptidão ao casamento à maneira americana, pragmática e não didática. Ela incorporara o espírito protestante dos americanos em sua cabeça. Para ela, os altos vôos do meu pensamento, muitas vezes, precisavam ser punidos em nome de um ''bem maior'' ----- totalmente cristão e casamenteiro ----, tão grande era o mal da vontade americanófila de ''ajudar'' e tão enervante seu espírito liberal de ''explicar as coisas''. A psicopatologia do ensino nos Estados Unidos estava presente nas neuroses de todos os cidadãos americanos, não só nos nascidos na América, do berçário até o túmulo. Todos os imigrantes ficavam assim com o tempo, e a intransigência de Anna não tinha nada de polonesa naquele momento. Ela arriscaria tudo para seguir tendo razão sempre, transformando muitos significados provisórios, dentro de nossas conversas, em monumentos decisivos erguidos em favor de sua força biológica e de suas obsessões sexuais de dominação. ------ Mesmo sabendo que só me olha de cima para baixo, não posso negar que você representa para mim uma experiência incomparável para o sentido do tato (.) -----, eu disse, colocando meu manuscrito no bolso. Anna observava-me em silêncio, sorrindo ironicamente, enquanto segurava os punhos com as mãos, os antebraços cruzados por cima do peito, para evitar que o roupão se abrisse. Apesar do laço na cintura, era possível ver-lhe a curvatura dos seios, e as veias salientes à sua volta. Nos cantos de sua boca, agora que se cumprira mais uma de suas malandragens, aparecia uma sádica expressão de saciedade. A parte de trás de seu pescoço era forte, e abaixo dele aparecia uma madura elevação dorsal. Uma mulher adulta, com pernas e braços muito bem proporcionados.
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Aquele escritório ficava atrás da sala e era um degrau mais baixo que ela, com portas de correr feitas de carvalho que separavam os cômodos um do outro. Assim que eu comprava os jornais do dia, corria lá para dentro e não ouvia mais nada. Ali eu passava horas a fio, que para as pessoas comuns podiam parecer tediosas, mas, pensando no anverso da medalha, dizia para mim mesmo que poucas pessoas sabiam acertar tão maravilhosamente suas contas com o mundo do que eu, quando fechava-me ali dentro. Um confeiteiro de contos infantis refinados ali sobrevivia melhor do que no Natal de Moscou. E, com a leitura dos cadernos econômicos, eu culminava minha iniciativa mais extrema no âmbito do dispositivo da imprensa, da administração empresarial e dos trustes, dispondo de meu próprio sistema imaginário de concentração de riquezas, simultaneamente no campo da poesia, da narrativa e das exegeses plástico-políticas. Após tantos relacionamentos desastrosos, a vida com Anna, mais bela e interessante que as outras, ao pegar um mínimo de embalo, ainda me parecia maravilhosa naquelas manhãs. Se ela me considerava um dândi, um macarroni ou um beau, também via em mim o deus vivo, sábio e indestrutível, elegante e belo como um pássaro. Trancado no escritório, era-me possível calcular inclusive o valor de troca dos meus poderes matrimoniais, captando em sua unidade central uma obra humana e literária gigantesca diante de tantos pequenos estereótipos que tentavam condicioná-la à uma rivalidade inexistente, vindos de fora, da periferia do espetáculo. Naquele contexto, o escritório parecia fechado em alturas inalcançáveis, enquanto eu misturava assuntos pessoais e universais. Quando aplicava meu procedimento de leitura anagógica às estimativas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, sobre oferta e demanda de grãos no mundo, não havia como fugir do fato: A previsão para o preços do milho, do trigo e da soja não só não ofereceriam suporte às cotações atuais, como passariam à pressioná-las ainda mais. Ajustes para baixo e correções da previsão para estoques mundiais ao fim do ciclo, (sentindo pela safra 2015-2016). Aquilo , para mim, era já futuro e não presente, eu pensava então. Trabalho revolucionário e não literatura elitista. Trabalho profissional inimitável, paralelo à literatura. Havia, por certo, muito do jogo gratuito na relação telepática com os russos; de outro modo não era possível entender o mutismo e a desconfiança sentidas por eles em relação à mim. ''Ali se dizia que ... '' muitos diziam a respeito, ou ''A opinião generalizada ali é que... '', dando-se voltas e mais voltas na própria língua antes de emitirem uma opinião mais aguda diante da audiência mundial . Tal comportamento não era diferente nos homens de terno de flanela, nas Bolsas de Valores, que viviam com o almanaque econômico aberto nos modelos estocásticos de equilíbrio geral, e para os quais uma opinião realmente segura era, antes de tudo, senão o único bem, ao menos a única garantia de outros bens necrosados pela volatilidade, como as ''expectativas racionais'' e o ''uso prudente'' dos próprios nomes e vozes em público. Eu procurava mudar de assunto, pois essa visão distorcida da economia e do ''Sr. Prudome'', o burguês tradicional, se encontrava no momento sitiada por todos os lados pela nova ontologia do nacionalismo. Obviamente , evocava estudiosos do assunto que eu conhecia muito pouco e que me atraíam para suas colunas como outrora o Demônio de todas as combinatórias essenciais da existência me atraía para o riso diabólico. E fazia essas reflexões em plena consciência de já ter realizado algo inconcebivelmente difícil, obtendo resultados quase científicos contra a hostilidade de mais da metade do globo. Resultado de uma encenação avant-garde contra todos os gestos marmóreos e rígidos de todos os operadores de swaps do mundo, dos quais o helenismo cheio de pó de suas análises macro-econômicas falavam de uma forma tão falsa quanto um teatro de corte alemão. Mas minha idéia geral, meu ''plano de trabalho'', assim como nos Cantos, de Ezra Pound, era apenas provocar uma espécie de encantamento divinatório e apaziguar o olhar furioso do mercado financeiro com um pensamento dilatado e brilhante que exprimia , no máximo , uma certa disposição de falar sobre lições de etiqueta. A velha escola de boas maneiras de toda ação política eficaz, tendo como fundamento uma comunidade econômica concreta, mas sem a versão distorcida e desoladora das zonas de livre comércio atuais, que haviam nos conduzido à um imperialismo burocrático, dissimulado e sem ideologia em sua última fase. ''Diós diasraiél (!) '', eu pensava ''Shuadovíditis Krávinis (!!) '', clamava comigo mesmo, gabando-me de falar iídiche com grande desenvoltura. ''Mãe do céu, anjo de amor, festa de sóreta (!) Cascavilhando um poucquinho a catadura deste COISO (!) E isso aqui, ainda por cima, se deixa fotografar como nenhum outro (.) E se toma por escritor e ainda por cima russo , alemão, francês(!) Um BESSELER, julgando que sabia de cor o que F.A. Weber afirmava em Die griechische Entwick der Zahl pun Raumbegriffe in der griechischen Philosophie bis Aristoteles und der Begriff der Unendlichkeit, assim como o que Giovanni Domenico afirmava em ''Che cosa è la mente sana''. Constituído espiritualmente no terceiro capítulo da edição de J.H. Peterman (Berlim, 1895), da ''Pistis Sophia'' : ''Opus gnosticum Valentino adjudicatum a codice manuscripto coptico Londinensi descripsit et latine vertir M.G. Schwartze. Em outros palavras: que eu me considero um Valentino. Mas não, trata-se de outra coisa.
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Se por acaso me exprimi de um modo um tanto estranho, peço que me desculpem, pois estou ainda tomando ar, após tentar abocanhar um favo de futuro em pleno vôo, cujo pulso não poderia ser mais largo que uma régua. Anna tinha agora uma expressão grave no rosto, que fez com que eu me virasse incontinenti. Não tinha certeza de que ela estava usando roupa de baixo. Não, realmente não havia bustenhalter ali. Como se tratava de Anna, era natural que ela embarcasse comigo nas extravagâncias do momento, os lábios pintados numa esquisita cor laranja, de ciclames napolitanos. Também havia cílios postiços e tatuagens hindus, o mundo como vontade e representação, a idéia geral parecendo ser a de provocar encantamento e apaziguar o sobressalto das palavras que saíam da minha boca. Mas ela aprovava meu jeito desenfreado. Assim como Goethe, ela também gostava de seu Demônio, e permitiria que ele acabasse bem, ainda que correndo um risco constante de se irritar com meu apego ao sucesso e a lubricidade que a enxurrada de lisonjas vinha causando na luz negra e tremeluzente do meu ego. ------ Um pouco vão às vezes (ela disse) por causa do reconhecimento repentino do mundo. E tão enigmático no seio dessas relações falsas que colocam uma sensibilidade de tamanha envergadura numa dependência tão grosseira. A comédia é sempre a mesma: tentar reestabelecer contato com o K. primordial, antes que a adequação moral faça mais estragos. Essas repetições intermináveis (das quais voce tem plena consciência) se tornam constrangedoras apenas por causa dos encolhimentos desajeitados que se seguem à elas, mas todos esses erros de perspectiva também têm sua verdade. Não deveria lhe censurar a aristocracia muito livre, as relações de liberdade para com o espírito crítico. Mas não seria ilusão acolher os julgamentos do que lhe falam em público, em familiaridade com tantos rostos e sensibilidades amigas (?) Certo, mas nem mesmo Goethe pôde fazer algo em favor de Schiller; e os encorajamentos excessivos nem sempre ajudaram Virgínia Wolf. Algo, no entanto, que permanecerá superficial. Se no momento lhe tomam por uma criatura vulnerável e exposta, não será, certamente, pela sua falta de modéstia, o desejo de ser grande e célebre como nenhum outro,de resto já consumado... tampouco pela preocupação de parecer perspicaz vinte e quatro horas por dia. Certas maneiras de fraquejar, num ou noutro momento, servem para afastar de si fraquezas maiores e mais essenciais. Como diria Péguy: '' Nunca começo uma obra nova sem tremer um pouco (.) Vivo no terremoto da escrita (!) '' -------, ela disse. Seus olhos, enquanto se expressavam sem nem mesmo olhar para mim, captavam em volta da minha cabeça um pensamento mil vezes dilatado, amplificado pela luz de uma experiência vital muito própria, exprimindo uma terrível sensualidade nas gotículas iluminadas de cada uma de minhas células. Embora me parecendo muito digna e correta, naquela manhã, Anna fazia gestos demais, avançava demais os limites de cada assunto, exageradamente disposta a falar e julgar. ------ Sinto muito (eu disse) Sei que facilito a ocorrência de frequentes mal entendidos, por excesso de naturalidade. Mas muitas dessas coisas não param na minha mente pelo tempo de um suspiro. São repercussões de uma existência que exige de mim tomadas de posição cem vezes por dia. E frequentemente reencontro- me com todas as minhas forças justo no instante em que me sinto abandonado pelo que considero mais necessário, provando que não tenho necessidade de nada. Que o poder está todo concentrado em mim, na minha mente e no meu corpo. Esse não é mais um pequeno pensamento extraído do meu meio de atuação, mas uma convicção intimamente ligada à natureza do meu desafio: captar a realidade sem disfarces no crisol superaquecido do meu corpo, na cintilação insignificante e abstrata dos momentos mais puros, exigindo de mim, para tal, uma humildade tão grave diante de Deus, uma fidelidade tão completa ao meu ilimitado poder de distração, que o risco que devo correr para triunfar sem as trapaças da oposição se afirme o tempo todo numa grande revelação iluminadora e consciente de seu próprio valor. Moments of being... poder de decisão e criação dos pequenos milagres cotidianos (fósforos inopinadamente riscados no escuro mais severo, que não dizem nada a não ser eles mesmos ).
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------- Enquanto do lado Democrata proliferam assassinatos de bons e honestos policiais americanos e atentados terroristas, no lado Republicano só se fala em remissão dos pecados e anamnese. Sinal dos tempos (?) -----, questionei Anna. Eu era um intelectual da deriva oculta e Anna adorava intelectuais de verdade, como aqueles capazes de lhe corrigir prontamente quando nomeava de um só fôlego, e animadamente, Proust e Bronnen como autores que escolhiam seus temas no domínio da ''sexualidade humana ''. Que singela insegurança ela demonstrava, então, quando eu sugeria que aquela era uma perspectiva estreita. Ela estava sentada muito perto de mim no sofá, quase segurando-me o braço, como se tivesse necessidade de sentir meus membros para se reconfortar. ------ Tudo que sai da sua boca aquece minhas minhas entranhas (.) ------, ela disse. Seu jeito de ligar-se à minha dispersão, à fascinação sem remédio de meus pequenos movimentos, trazia-lhe uma terrível felicidade, sobretudo quando me surpreendia consultando alguma obra. ------ Haverá alguma solução para reunir aquilo que se dispersa como um furacão, para tornar contínuo o descontínuo e manter tanta coisa errante num todo unificado (?) -----, ela indagava, num tom sério e profundo. Sua fala movente era como o sonho e a imaginação das águas de um rio, mas , na intriga romanesca que era nosso relacionamento, ela não se livrava mais da visão de nossa vida como um longo trem de carga transportando pedaços, cacos e fragmentos de livros à toda velocidade, como matéria-prima para que me expressasse também nela e por ela, delimitando o campo expressivo da minha obra. ------ Não se trata de uma matéria puramente teórica para mim, muitas vezes me lisonjeia o fato de ter sido eu o escolhido para ouvir seus monólogos... vivo em estado de consciência alterada, e frequentemente não percebo que o mundo que nos rodeia há muito encontrou em mim seu cronista culto, e que a leitura dessa crônica colossal acarreta, muitas vezes, a extrapolação da obra em si, sua projeção como espelho do tempo que nos inclui (.) ------, eu disse. Quando fiz uma pausa, várias ondas de silêncio passaram entre nós. A boa educação demonstrada pela atitude com que Anna me ouvia era particularmente sensível no colorido líquido dos seus olhos. Olhos que viam em mim uma pintura que não tinha nada de imaginária, cuja dimensão plástica transbordava até a náusea as fronteiras da tela e invadia o mundo e o tempo de onde ela estava sendo admirada. A anedota pictória tornava-a histórica, insustentável e perturbadora. ------ Por princípio, acautelo-me de explicações muito detalhadas, que a vida mental da humanidade imediatamente tornaria ininteligíveis (.) Mas não posso deixar de associar seu caso ao de Marx, Rousseau, Marat, Saint-Just e outros do gênero; oradores possantes, estremecedores de paisagens, escritores que principiando sem capital nenhum, alcançaram uma influência ilimitada. Mas também há uma arraia miúda cujas proezas são sempre maiores que a da gente estabelecida: pequenos advogados, rábulas insignificantes, leitores de jornal, fanfarrões de cidade pequena, panfletistas virtuais, cientistas amadores, boêmios, libertinos, punheteiros, cartomantes, charlatões e farsantes. De repente, um advogado louco de província exige a cabeça da Presidente da República e consegue-o. Há muitos casos parecidos. O jovem Marx, estudante universitário, escrevendo livros que dominaram o mundo. Ele realmente fôra um bom jornalista e publicista. Como a maioria dos jornalistas, tirava algumas histórias de artigos de jornais publicados na imprensa européia, mas as reescrevia muito melhor, mesmo que o assunto fosse.. . sei lá, a Índia (!) , Matérias das quais pouco entendia de fato. Mas era maravilhosamente esperto, um gênio em conjecturas, polemista poderoso, retórico insuperável. O que estou querendo dizer é que homens sem dinheiro algum, sem ajuda de ninguém, execrados até mesmo pela própria família, conseguiram elevar-se sozinhos, contando apenas com as próprias forças, primeiro até a nobreza do Ocidente, depois, até a glória universal. Esses são, de fato, os personagens realmente capazes de imporem seus mandamentos, de construírem discursos sólidos, de comover as massas para que, então, a história lhes siga as palavras. Pense só na quantidade de guerras e revoluções em que a humanidade foi envolvida por meros escrevinhadores nos últimos três séculos (!) -----, ela disse.
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Anna soprara no meu ouvido comentários repletos do mundanismo de suas amigas de Beverly Hills. Mas mesmo quando ela zombava de mim, eu me sentia aliviado, não considerando minhas supostas gafes, particularmente, nenhum bicho de sete cabeças. Eu não estava nem um pouco preocupado em ser a figura central de nenhum culto. E talvez sem suspeitar, eu apenas brincasse com minhas criações, ao invocar aquela antiga observação de T.S. Eliot: ----- Segundo ele (eu disse à Anna) no meio de sua vida um homem se encontra na presença de três escolhas: não escrever mais nada, repetir-se com, talvez, um grau sempre maior de virtuosismo ou, por um esforço de pensamento, adaptar-se a uma certa ''idéia moderadora'' e achar um novo meio de trabalhar. E ele sabe muito bem que isso não se dá apenas ''no meio da vida'', mas a cada virada de si mesmo, e a cada nova obra ou intervenção, a cada página de sua obra, que uma dessas três escolhas (para ficarmos só nelas) devem ser propostas . Isso se por felicidade uma espécie de mágica ligeireza e astúcia não lhe permitir, a cada vez, passar à frente delas. Modéstia a parte, ficar ligeiro sempre fez parte de mim (.) ------ , concluí. Minhas palavras não pesaram quase nada na expressão de Anna. ''Raramente (eu pensei ) uma angústia dissimulada teve uma aparência tão leve ''. ----- Vou lhes dizer uma coisa (ela retrucou) Vocês agora me escutem bem (!) -----, a voz dela, forte e natural, pretendia, naquele momento, comandar de forma instantânea à de todos os outros, na festa, forçando farpas de desprezo à sua volta. ----- Há um pouco de estupidez, de estupidez quase masculina, nesse movimento que pretende colocar ênfase demais na ''condição das mulheres''. Acho que esse adorável país ainda procura entender porque a influência de Madame de Lambert permanece tão enigmática na guerra dos gêneros. ''Mom ami, ne vous permettez jamais que de folies, qui vous feront grand plaisir ...'' . O ''eterno-feminino ''puxa para o alto, não para baixo (.) ------, ela disse. Mas talvez Anna estivesse se referindo à todos os homens com os quais teve que brigar durante à vida, não à mim. Ela parecia falar levada por um movimento prodigioso, a um acordo exaltante com aquela ''coisa abstrata incorporado ao céu'', mas um minuto depois pôs os dedos sobre os lábios, para se controlar. ----- As mulheres descobriram a América através da Europa e da política (observei eu), sem nenhuma orientação formal, invocando não só Madame de Lambert, mas sobretudo Madame Roland, Madame de Stael e George Sand, acompanhadas por uma enorme fé ingênua no poder transformador da arte, antes de irem buscar contra-argumentos mais poderosos em favor da emancipação feminina nas cinquenta ou sessenta primeiras páginas dos livros de Tósltoi. Tudo isso seguiu inapreensível durante muito tempo, até o feminismo transformar-se num bate-estaca moderno ---- eu disse.
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O interesse tautológico-autonímico da fotografia. Mas na reta final da campanha, não eram as selfies, mas o manejo de números concretos o que me dava mais prazer. Todo cálculo no qual a natureza da unidade primordial não fosse especificado me parecia ocioso. ----- Não seja bobo, Maia... eu falo diretamente à curiosidade popular, a economia é apenas o ''carro-chefe'' do meu hermetismo político, daquilo que é ''incompreensível para as massas'' (.) Os juros fixados para equilibrar poupanças e investimentos. Comparando com os 4,5% de antes de 2008, o Fed conta agora com 1,5% a menos de taxa de juros natural para conter o próximo choque econômico. Isso, devo repetir, é somente uma primeira aproximação das perversidades embutidas na existência globalizada, um esboço da verdadeira complexidade dos eventos (.) -----, eu disse. Eu me entregava publicamente ao cálculo mental e meditativo, e as cifras que então manipulava na cabeça povoavam meus projetos de cores e formas. Estava sempre calculando o tempo que ainda tinha para me dedicar a cada um deles, frequentemente falando às pessoas o que era preciso fazer para se obter mais saúde e dinheiro. ----- A cura do crescimento baixo por projetos de infra-estrutura financiados por dívidas... isso incentivaria os investimentos privados também, mediante o cotejo monitorado dos grandes bancos (.) ------- , mas alguma coisa, infiltrada e camuflada no meio da multidão, acompanhava com ódio frio e desdenhoso cada uma de minhas idéias e movimentos, o deslocamento dos meus testículos, as contrações involuntárias do meu reto. ----- Algum problema Mr. K (?) -----, me perguntava o Maia, ainda com seu chapéu e seu livro de Schumpeter debaixo do braço (nosso caminho na penumbra dos corredores do angar do aeroporto, depois, em meio à fumaça e o cheiro de hamburguers grelhados). ------ Comprar sempre custa menos que financiar . Problema nenhum (.) -----, respondia. Mas já estávamos todos apertados nas poltronas do avião. Uma mulher loira, geralmente uma assessora próxima, sempre me respondia em francês (eu havia substituído toda minha equipe de campanha profissional por pesquisadoras de literatura comparada e psicanalistas trans-pessoais afeminados). Durante os vôos, eu me divertia sadicamente obrigando-as à acompanhar meu raciocínio no sentido de denegrir a imagem das economias rentistas e defensivas do terceiro mundo, e propunha testes Stanislouski de floculação espermática nos detentores do grande capital desterritorializado do mundo para comprovar a relação entre infertilidade, vasectomia e a ‘’destruição criadora’’ de Schumpeter. ----- A relação dívida-PIB cresceu nos Estados Unidos e na Europa. A irracionalidade do mercado se esgueira à sombra da deflação de ativos. O que era uma forma de valorizar a riqueza acumulada há pouco tempo, vem provocando o necrosamento do tecido econômico. Eu me pergunto até quanto o Mercado Financeiro seguirá ejaculando dentro do pote (?) Sua foda gélida, de pé contra as paredes de vidro do Fed. É quando lavam o pênis e abotoam o zíper que começam os problemas, fazendo com que os riscos de desvalorização dos estoques existentes transformem-se na ocupação única do Banco Central (.) -----, eu disse. Todos no avião percebiam maravilhados minha necessidade de ser cativante. É claro, aquelas pessoas, que tanto me respeitavam, sentiam também necessidade de fazer seus pequenos testes de linguagem, inserindo no nosso diálogo notas minúsculas de irreverência. Um pouquinho aqui, um pouquinho ali, pequenas familiaridades, insinuações sutis, explorando, tentando descobrir alguma camada eventualmente secreta no meu comportamento. ----- Meu caro amigo (dizia o Maia) para que se dar tanto trabalho procurando (?) Há muitos lugares em que se pode encontrar os vestígios da corrupção, ser-me-ia fácil mostrar-lhe alguns aqui do alto, assim que entrarmos no espaço aéreo de NY (.) ----
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O cenário para aquela conversa era em si curioso ----- os tapetes verdes, os vasos prateados enormes, cortinas de seda vagamente lilazes decorando a famosa sala de estar de Liz Rogoff. No sofá, entre aquelas repetidas moças de Beverly Hills, Isaac Lal, miúdo, encolhido, na sua compleição escura que lhe dava um ar enferrujado, era como um ornamento ou um quadro oriental. Eu mesmo, escorado em Anna na poltrona ao lado, sentia essa influência como uma figura em cor indiana ----- o rosto de feições acobreadas, os cabelos platinados esvoaçantes rente`a porta da varanda, os círculos formados pelos óculos de fundo de garrafa e a fumaça do charuto envolvendo-lhe a cabeça. Eu fôra um dos que insistira em sua orientalidade, horas antes, e todos agora viam-lhe como oriental, apesar da velocidade que Lal vinha injetando na cadeia de suprimentos da moda americana das ruas. ------ Trata-se de uma estratégia de marketing para reter mitos e ritos mercadológicos instantâneos, como a blusa prateada que deixa os ombros de fora, da grife ****, que esgotou dois dias depois de chegar às lojas e foi reposta em menos de uma semana (.) ----, ele disse. No tocante à atual situação de seus negócios , via-se que sua satisfação pessoal era tão grande que contribuía para aumentar o magnetismo de sua presença entre nós. Como ele falara aquilo com um sorriso, também sorrimos, tentando acreditar que seus epítetos eram usados de forma inofensiva. Mas aquilo era uma expressão de capitalismo selvagem e neurastenia predatória; e se ele tivesse feito seu relato ganindo ou urrando, certamente nos atiraríamos no chão e nos contorceríamos aos seus pés. Por outro lado, eu e Anna sobressaíamos por nossa sofisticação, fascinando à todos por permanecermos a maior parte do tempo calados, esplendidamente calados, e solenes no nosso sentimento de sermos um casal predestinado, sempre a postos para assumirmos uma posição de autoridade em qualquer conversa. ------ Produtos da moda rápida para varejistas com lojas físicas nos principais quarteirões de Nova York. O mundo geralmente tem girado depressa (eu disse) e acelerar a produção em sintonia com as mudanças súbitas no temperamento do consumo nunca foi fácil (.) -----, concluí. Mas aos olhos de Anna, eu comprometia meus valores de artista com aquela inesperada bajulação, segundo sua apreciação ''ideológica'', e me banalizava ao lado de alguém muito menos digno de merecer minha atenção que ela própria.Preconceitos... A dona da casa, Liz, reservara, por causa disso, uma mesa para nós na outra sacada do apartamento, e pediu para que nos juntássemos o quanto antes ao seu grupo. Também estendeu o convite à Lal, mas com uma pose tão vaga, que ele permaneceu imóvel no sofá, intimidado por aquela espécie de cortesia dissimulada da classe alta. Para mim, era uma ótima oportunidade de conhecer o famoso Clube Rogoff por dentro, e a mesa onde Winchell sentara-se no passado, rodeado das tentações sociais que a plutocracia da arte e da moda novaiorquina balançavam diante dele. Estabelecer contato com Liz Rogoff ( a falante!) fôra providencial para mim, ainda mais após compreender seu belo caráter depressivo e melancólico, cheio de atrativos surpreendentes, como só o tédio é capaz de cultivar. E embora eu talvez tivesse caído sob o feitiço de sua aristocrática imponência, sentindo que ela se considerava o exemplar mais altivo de ser humano da América, tudo se passou de forma tão espontânea que em momento algum eu achei que deveria detestá-la tanto quanto Anna a detestava. Parecia-me uma mulher impressionante, vista de perto. Não encontrei em mim forças para produzir o mínimo sinal de antipatia, ao sentir que (talvez) fosse precisar dela para sempre ! Quando me ouvi dizer : ''Srta. Rogoff, poderia me dar um autógrafo (?) '', os olhos de Anna pareceram perguntar-me em que tipo de animal doméstico eu havia me transformado de repente. Ou que tipo de alucinação eu estava sofrendo. ------ Quando criança (Liz disse, inclinando-se para rabiscar meu pedaço de papel) odiava ser separada do meu pai, professor de francês e matemática; assim como de minha casa, e de meus ''amiguinhos''. Quando algum deles tinha que ser levado embora, costumava protagonizar chiliques homéricos. Alguns garotinhos sempre me faziam soluçar, desde a infância. Certas partidas constituíam para mim tamanho castigo que , às vezes, chegava a adoecer. Devia sentir a separação dos meus pequenos príncipes no âmago das minhas moléculas, tremendo nos seus bilhões de núcleos. Seria isso uma hipérbole (?) ------, indagou-me ela. Nenhuma, pensei, maravilhado, sentindo no meu próprio corpo todo o poder enregelante de uma mulher à quem os outros estavam sempre sorrindo, agradecendo, cortejando, bajulando, abraçando e odiando. Pois Anna a odiava silenciosamente naquele momento, em que o olho de nossa conversa entrara no campo de tão pequenas imagens, distribuídas ao acaso na vitrine dos meus olhos. No tempo da Srta. Rogoff tudo se dava simultaneamente, como no meu, numa metáfora elástica e contínua de palavras deslizando de figura em figura, até fixar completamente meus olhos no seu rosto. Seu comportamento era puro, poético, intenso e de ordem metafórica como o meu. A princípio, não compreendi que ela conhecia minhas obras a fundo; nem entendi que ela estava usando o poder de sua celebridade para espreitar minha presença em sua casa como uma elipse numa coluna social. ----- Obviamente, ele se gaba descaradamente, em suas obras, de haver ''descoberto'' no homem atual, uma NOVA FACULDADE, a faculdade para os juízos políticos sintéticos ''a priori''. Reflitamos: Como são possíveis tais juízos, hoje em dia (?) Vermoge eines Vermogens. Mas com tanta cerimônia, tão venerável e tortuoso, às vezes, que não se percebe facilmente a divertida ''niasserie'' de suas respostas à questão. Grande é o entusiasmo do poeta K. E grande o ''en- thous- iásmos '' de suas respostas cerebrais nas redes córtico-talâmicas de alta frequência de suas leitoras. Aqui, rapidamente nos embrenhamos nas moitas de uma Realpolit(k) internacional, baseada em fatores pragmáticos e materiais, buscando a relação imediata entre as forças vigentes no mundo, em seus cenários concretos, em detrimento de qualquer jogo de influências ideológicas supérfluas. O corpus dessa obra é eletronicamente mais denso que a chuva tropical que adensa as florestas com seus organismos. Muitas de suas exigências políticas, econômicas, militares e metafísicas são (com frequência) verdadeiros poemas inspirados na rude matéria secretada pelas misérias do mundo. Nem tentarei mais superar essa impressão de poesia universal para me concentrar nos aspectos puramente geopolíticos de sua mensagem. A arcaica gesticulação telúrica e seu jogo de vibrações numa rede de captura de sinais. Para quem sabe VER, tudo coexiste em K, simultaneamente temos acesso ao mundo de Gilgamesh, à inversão de curso dos Bancos Centrais, ao biscuit do século dezoito, à coexistência de harpias e Coatlicues e piveteiros coríntios e esfinges e terracotas libertinas; e Tanit e Gudea e sereias hollywoodianas e o cellinesco e o felliniano e à zoomorphias pré-colombianas e aos pactos obscuros que atravessaram a formação dos conglomerados econômicos atuais, assim como aos gênios babilônicos e os ritos sacrificiais cananitas reabsorvidos na maçonaria psíquica e na política fisiológica e publicitária de poderes e empresas defrontados sob a luz de Ishtar. Mas essa (obviamente) não é uma listagem de referências qualquer, Ele luta, é visível. E muitas vezes, luta silenciosamente, como que a partir de um mistério da consciência. Luta não sem uma terrível astúcia de pensamento , e depois com a astúcia mais profunda ainda, que consiste em mostrar, sem disfarces, os mecanismos seminais de seu verbo.
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Tudo se passava, naquela hora, de maneira tão espontânea que não compreendia sequer como aquela dama da alta roda, com a qual eu deveria antipatizar-me por princípios ----- e sem nenhum esforço ---- podia me parecer agora tão impressionante, vista de perto. Décadas atrás, ela poderia ser politicamente definida como uma partidária do macarthismo, uma inimiga da U.R.S.S., contudo, onde é que foi parar minha antipatia, quando ela acabou de falar e se aproximou de mim. A proximidade física com ela realçava em mim o sentimento de minha baixa extração social, mas fazendo minhas monstruosidades e incansáveis passeios pelo Mal parecerem apenas uma forma de buscar Deus através de obscenidades e heresias. Eu não tinha nenhuma intenção de ser humorístico quando sugeri à ela que eu era uma ''vítima dos livros'', que crescera abandonado numa casa de fazenda arruinada, rasurando as bordas das enciclopédias e dicionários. Mas ela ria. ----- Dois cents para cada cem rasuras em jornais de senhoritas (eu disse) Um dólar a coluna inteira. O Marquês de Sade, do seu modo tresloucado, também fôra um filósofo do Iluminismo. Apenas pretendia ser, além disso, um blasfemador. Para aqueles que conhecem sus passos, e compreendem a fundo algumas de suas recomendações, a idéia é mais uma forma de higiene que de blasfêmia. Prazer que também é higiene: uma vida ''encantadora'' e ''interessante''. Mas uma vida ''interessante'' (admito) é o supremo conceito das almas simplórias. Quartier Latin; Schwabing; Greenwich Village e San Telmo... a vida vivida no limite da legalidade, como dizem os biógrafos. Mas talvez eu não esteja pensando com tanta clareza, no momento (.) ------, concluí. Ela continuava ouvindo-me atentamente, enquanto eu me perguntava como podia estar sentindo-me tão subjugado pela pusilanimidade de seus fãs, e me dirigindo à ela com ares de um completo palerma. Era o poder dela, claro. O poder de sua celebridade, do qual certamente também participava sua incrível beleza física; pois com umas poucas palavras, um único comentário, Miss Rogoff era capaz de fazer e desfazer carreiras no Show-Business. ----- Como tudo isso aconteceu , querido K (?) Dou-me conta (sim) da anormalidade de algumas de suas experiências de vida. Mas no Chat Noir, em Paris, conheci muita gente assim: os mesmos hábitos noturnos, a originalidade (nas roupas ? , nem tanto), certos abusos de consumo, mas, principalmente, a literatura como expressão de um ''Mal'' profundo, cuja opressão todos tiveram que suportar ao longo da vida. E também uma previsível resistência à economia de mercado que domina o mundo cultural. Por vezes tive de perguntar-me se havia lugar para mim entre eles, tendo em vista que jamais lhes seria ''uma igual''. Em todo caso, sempre procuro suspeitar de meus próprios julgamentos, já que o quinhão de vocês, ao contrário do meu, foi sempre ''extremo''. O garoto livresco, cuja vida não parecia destinada à nenhum tipo de ação. De repente, o rapaz torna-se um ''scapigliati'' ; depois, uma palhaço fora de controle e, pouco a pouco, não há mais nada em sua vida a não ser ação. Um tratamento muito rude dedica-lhe a vida, e por muito tempo ele só é capaz de ver as coisas com uma peculiar dureza de coração. Quase como um ''criminoso'', afastando de si, deliberadamente, todos os arranjos comuns da vida e desculpas esfarrapadas, até simplificar a tudo e a todos brutalmente. Ou como diria Mr. Bertold Brecht: ''Erst kommt das Fressen, und dann kommt die Moral ''. Mas isso chega a ser presunção. Aristóteles também disse qualquer coisa assim: ''Primeiro a comida, depois a Moral ---- A gente é aquilo que a gente come ''. Aristóteles, e não Bruce Lee, como se acredita hoje em dia. Conta-se que Platão, antes de morrer, reuniu seus discípulos na Academia para lhes falar do ''Bem'', o núcleo mais íntimo e obscuro de sua doutrina, que ele nunca abordara de forma explícita. Na Éxedra se encontravam nada menos que Espeusipo, Xenócrates, Aristóteles e Filipe de Oponte. Expectativa e nervosismo. Mas quando o Mestre começou a falar, ficou claro que ele só se ocuparia de questões matemáticas, geométricas, de linhas e números, superfícies e movimentos dos astros, e que, por fim, da idéia de que o Bem era tão somente o Uno. Nem Aristóteles soube direito o que pensar... no entanto, foi assim que Platão, que sempre ensinara seus discípulos a desconfiarem do tratamento temático dos problemas, e que, nos seus escritos, reservava um lugar de destaque para as ficções e mitos, tornou-se, ele mesmo, um enigma e um mito. Hoje eu entendo perfeitamente porque a Humanidade marca certas pessoas com o signo do mistério. E o fato de serem enigmáticas, deixa tais pessoas com idiossincrasias, em meio à experiências do tipo ''deformantes'', que dão à elas, pouco a pouco, maestria e poder, fazendo-as elevarem-se da passividade à ação, do informe e caótico à clara figura, ou mesmo de uma poesia indecisa à um prosa suntuosa e decidida. Com suas obras, tais indivíduos realizam uma auto-desintoxicação completa (.) -----, ela disse. Correspondências, claro: o termo ''deformante'' indicava as mudanças que podia-se operar entre as diferentes linhas, mas, como em quase toda a nomenclatura do nosso Hades novaiorquino, soava como um termo extremamente ''carregado'', na boca dela. ----- Claro que fiquei deformado (eu disse) e um pouco obcecado também (.) Repare que estou sempre falando de poetas malditos, aventureiros irresponsáveis, originalidade e individualidades dramáticas, possessões catárticas e psicodramas, epifanias e hierofanias, e sobre a teatralidade nas pessoas famosas, da política à arte, das formas tomadas pelos esforços espirituais de cada um, em sua própria luta pessoal (.) Tudo isso fica rodando e rodando na minha cabeça, por que eu percorri essa estrada do início ao fim, tendo como única bússola confiável a literatura francesa e meu psicopompo, Charles Baudelaire. Mas, de repente, volto a sentir que está tudo bem, Que entre eu e você, neste exato instante, não existe nenhuma abissal ruptura de nível que não possa ser superada com facilidade, e que à medida que os minutos passam as confluências entre nós persistem, se aprofundam, e eu quase não perco a coragem... É incrível (!) Deveria estar apavorado, certo ?? O que será que está obrigando a distinta Srta. a sentar-se na companhia de um comediante falido, barulhento, um mau ator, uma figura ridícula; enfim, de um homem desejoso de desempenhar ''papéis'', como eu (?) -----, perguntei-lhe, rindo timidamente, de maneira ''clássica''. Aquilo foi o que desencadeou o resto. Sentamos num tapete ao pé da cama dela, em seu quarto, e conversamos até eu sentir uma vontade incontrolável de beijá-la. Miss Rogoff contou-me todo tipo de histórias a respeito de si própria, histórias que não deveria ter contado a um escritor. Cheguei mesmo a ficar com ciúmes de algumas delas, dando asas imensas à minha vaidade momentânea. Alguém , assistindo-nos de fora, poderia classificar nosso diálogo de ''trocas '', mas eu preferia chamar aquilo de ''combinações''. Qualquer das duas palavras, porém, continha uma carga análoga, insinuando mutação, metamorfose constante, etc. O homem que desce ao fundo de si próprio não é o mesmo que volta à superfície; mas, claro, precisa ter guardado o óbolo entre os dentes, ter merecido seu ''traslado''; o que, para os outros, pode nunca passar de uma insignificante viagem entre estações de metrô; de um ''esquecimento imediato''... Mas não para Miss Rogoff.
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----- Talvez minha capacidade associativa esteja sendo distorcida por algum tipo de feitiço (ela disse) Mas não considero esse o seu melhor lado. Você não está mostrando seu melhor lado. Vamos (!) ----, Miss Rogoff disse, com a superioridade de alguém que tinha aprendido, desde mocinha, a não se curvar para se defender verbalmente de um adversário socialmente inferior. O prazer do rebaixamento pela paródia (ela pensava) comum à assassinos e atores condenados. Era exatamente isso que a preocupava na minha teatralidade. ----- Por favor (continuou ela) Diga se assim lhe parece ...) ----, não havia mais ninguém no seu apartamento, e eu estava pensando se devia dormir ali ou ir para a estação de metrô mais próxima. Ainda assim, eu lhe sorri, com um auto-controle perfeito. Desse modo (pensava) eu conservava uma sinistra atitude autocrata diante da fome de supremacia que Liz não conseguia disfarçar em momento algum. Na verdade, eu me considerava mais intimidador intelectualmente quando falava pouco e deixava a autoridade fluir de dentro para fora, ao passo que nela, o assustador decorria de sempre querer falar tudo. ----- Talvez meu objetivo seja ressaltar que sempre estive louco desde o começo (eu disse) ; Desde a tenra infância,nenhum choque serviu para me tornar mais são. O menino abandonado desde cedo deu provas incontestáveis de seus maus instintos, roubando inclusive a família do caseiro que cuidava de sua fazenda. Repreendido por parentes distantes, o menino perseverava, roubando e pilhando mais e mais e, como se não bastasse, assediando as filhas dos matutos. Mesmo com dinheiro, ele preferia viver numa miséria aparente, vagando à cavalo pelas estradas rurais e cometendo pequenos furtos, fornicando com empregadas e traindo cada um de seus parentes . Nada era capaz de desencorajar seu zelo pelo crime. É neste momento que (ao que parece) ele se dá conta de que o pior delito de todos não era praticar o Mal, mas manifestá-lo publicamente. Aqui é que ele se torna escritor e poeta de fato (.) ------, eu disse, rindo da fisionomia amorfa de Liz, porque minhas palavras arrancavam faíscas de seu estado de tensão. Seus olhos fixos buscavam em mim qualquer coisa que pusesse a descoberto o forro escarlate de gabardine, o murmúrio de cetim da minha voz. O leve frêmito que percorria seus ombros também ansiava por aquele golpe de vento em suas idéias; pelo jogo preparatório em que, reconhecendo-se em mim após certa aproximação, ela se realizaria completamente no meu pensamento. Mas a novidade e o interesse assombroso que o assunto causava no mais íntimo do seu ser eram produto do meu vampirismo intelectual, mais do que de um autêntica paixão. ------ Acho que você nunca soletrou seu pensamento mais claramente (ela disse); e, por outro lado, nunca se fiou tanto nessa espécie de arrebatamento discreto, propiciado pela chance de pintar a gênese do horror com tanta complacência, denunciando até mesmo o ''humour'' com que realiza a tarefa, ao invocar sua infância. A repetição insistente, tanto em você quanto na sua obra, é o procedimento pelo qual você afasta as leitoras e a si mesmo das vias normais, num ''parti-pris''artístico de puro asco pela normalidade. Mesmo rindo o tempo todo, você é incapaz de recusar o contágio das exigências espirituais mais amargas, que liberam o espírito da tentação do repouso. Um fúria fantasmática de nulificação, de negação dos valores mais atraentes para a sociedade, confere à pintura renovada das mesmas situações em sua obra uma espécie de acabamento. E o relato de todas essas conspurcações gera uma confusão diabólica no público, bem ao gosto do típico ''comédien'', salvando a narrativa do atoleiro do pensamento ordinário, transformando-a numa imensa avenida alternativa à ele. Seus escritos, boa parte deles monstruosos, são um ponto de partida extremamente favorável à sua atuação. Eles lhe permitem, a todo momento, usar o valor de choque e a turbulência moral, cujos resultados no público sempre lhes são proporcionais(.) -----, ela disse. Nitidamente, Liz não estava bem. Usava, naquele momento, apenas um buraquinho pequeno para falar, um buraco no centro dos lábios com a circunferência de uma pastilha para tosse; através desse furo bucal, ela expelia as agulhinhas quentes de suas idéias, dominada pela fascinação que o confronto com as minhas lhe causava, enquanto eu tomava ares de esfinge à sua frente, insinuando-me, preferencialmente, como um vampiro de quase um metro e noventa de altura. ''Quanto mais disciplinado eu for'' (pensava) ''Quanto mais evitar movimentos supérfluos, gesticulantes e deambulantes, tanto mais cada postura e atitude do meu corpo se bastarão a si mesmas (.) '''. ----- Certo (eu disse) Mas nem sempre sinto necessidade de arrastar para dentro de lares ricos e civilizados meu vampirismo inato. Não me importo muito que as pessoas gostem ou não de mim. Acredito ter dominado um certo número de mistérios da consciência e estou ''cagando'' para o efeito sensacionalista disso nos outros (.) ------, concluí. Desta vez, os olhos dela se arregalaram, opalinos, como num grito mudo, sem fundo e sem teto, que indicavam um estado inconfessável de emergência, de alto risco, e que ,de forma efetiva, acabou pondo fim no ''plano ordinário '' de nosso diálogo. ------ Você teria coragem de vir comigo até o metrô (?) (perguntei-lhe) São um e quarenta da manhã (.) -----, sugerindo a primeira ''grande noitada'' fora de casa de nosso recém-nascido relacionamento amoroso. Ao aceitar prontamente, Miss Rogoff admitia a fraqueza das formas objetivas disponíveis até o momento para nossa interação, e, consequentemente, sua súbita falta de confiança nelas. O vasto sistema novaiorquino de metrô se estendia por 375 km, com 468 estações. A cor verde, nas esferas luminosas, indicavam vendas de bilhetes vinte e quatro horas por dia; e a vermelha, que a entrada estava restrita. Os trens expressos eram indicados por um círculo branco. Fomos de táxi até a estação de South Ferry, e eu a levei até a ''off hours waiting area'' da plataforma. Antes que o relógio marcasse duas da manhã, , já não havia ninguém em South Ferry, o metrô como ''intercessor''... Condicionamento rotineiro das ruas versus estados de cenestesia. O vagão central: ----- Vamos (?) (convidei-a a entrar) Basta descer aqui (disse depois) que uma mão invisível se apodera da nossa. Mas numa figura como eu, é possível encontrar o pior de todos os casos: a mais monstruosa forma de exagero do próprio ego. Minha mão te levará hoje, igualmente, sem a menor possibilidade de escolha, a tocar sua própria personalidade com o máximo de exagero e selvageria. Então você compreenderá o que é um vampiro de verdade, Liz (.) -----, eu disse. De fato: ao olhar para a fisionomia desconfiada dela, parecia-me já ter visto aquele rosto milhares de vezes. Era o rosto de uma vítima, e estava expresso nas entrelinhas de todos os livros que já lêra na vida. ----- Assim que os terráqueos descobriram um nome para si (prossegui) : Humanos ou coisa que o valha, passaram a comportar-se como humanos, ou coisa que o valha, rindo e chorando, fazendo rir e chorar, procurando ocasiões, provocando-as, regozijando-se em torcer as mãos e tirar lágrimas de suas glândulas, nadando e navegando nesse nebuloso, contaminado, confuso, agitado mar de sentimentos humanos, tomando as águas da paixão e clamando a respeito de seu próprio destino. Justamente o comportamento que eu e minha obra condenamos (e ri) considerando uma particular falta de originalidade perseverar nessas caminhos simplórios (.) -----, disse. Enquanto caminhávamos por outra estação, grades, setas, passagens, trilhos, círculos luminosos, catracas e escadas anulavam toda e qualquer margem de capricho, todo e qualquer zigue-zague de superfície à nossa volta. Era o ambiente perfeito (eu pensava) da relojoaria predeterminada da noite de lua cheia, onde as potências da superfície adormeciam e o acesso aos outros níveis da realidade se faziam possíveis. ----- O metrô ( continuei friamente) nos torna, por um instante, porosos e disponíveis à tudo aquilo que a ''liberdade'' da superfície nos priva, sobretudo durante o dia. Agora, suponhamos que a Srta. tenha também , como eu, se cansado desse lastimável teatro da alma humana, e comece a perceber que, pela maneira como tem olhado pra mim, esteja aprovando apaixonadamente a desolação do inferno congelado no qual eu vivo. Que, num estalo de vossa consciência, todas as formas familiares de buscar a si mesma na superfície da realidade cotidiana, tenham de repente se tornado, para você, trastes históricos, pesos mortos, deformações hereditárias, menstruações lunares e cargas excessivamente burguesas para uma alma superior seguir transportando em sua jornada na terra. Ora, seu ego pensará imediatamente em meu esplendoroso deserto como uma alegre e nova roupagem de grandeza, lindamente pintada pela genialidade dos artistas mais perversos que já viveram até hoje. Ou então vossa personalidade, da qual a proprietária sente não estar tão orgulhosa quanto gostaria, entrará num maravilhoso ''estágio ético de revolta '' , prolífico e belíssimo (!) Se vivessem em nosso tempo, Gerárd de Nerval e Baudelaire teria amado o metrô, exatamente como você está sentindo que me ama agora. Nerval, pelo seu lado alucinatório, cíclico e recorrente; e Baudelaire pela artificialidade total das estruturas metálicas sob a luz mortiça e estancada. Em sua volúpia de assimilação, o relato vivo de um vampiro é sempre a apresentação apetitosa que ele põe à mesa após devorar uma série de alimentos crus. É a apresentação daquilo que ele comeu cru. Mas a arte do vampiro não são seus hábitos alimentares, nem seu ''alimento''; ela só começa para além deles. Aquilo de que o vampiro se alimenta é repugnante e intragável para os outros, e as pessoas morreriam ou enlouqueceriam se se alimentassem disso ''in natura''...
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Às seis da manhã, eu já havia alugado um dos noventa mil quartos de hotel de Nova York, na 13 Eight Ave., a rua mais bonita do West Village, calçada com arenito avermelhado e ladeado por butiques. Andara até o amanhecer pelas estações de metrô, até o momento em que meu celular tocou. Era Liz: ---- Não sou de espantar-me facilmente com o vigor mental dos meus sonhos noturnos (ela disse) mas o dessa noite produziu na minha mente o efeito de uma dissertação de trezentas mil palavras, e abaixou um pouco minha imunidade. Acho que estou ficando gripada. Sonhei que tinha estado com você no metrô. Impressionante como os rostos das pessoas passeando num carro ou num ônibus refletem intensamente o que os rodeia ao longo do trajeto, e como seus olhos acompanham todos os estímulos das cenas, desenhos, textos e pigmentos de cor que invadem a paisagem a todo instante. Mas no metrô é tão diferente : tudo é rígido e atemporal (não há nada para se ver, ouvir ou cheirar: tudo é recorrente, forçosamente idêntico, num raio de quilômetros. A propaganda dura eternamente, enquanto que a luz e o ar tem sempre a mesma consistência. Os olhos morrem de fome no metrô. No sonho dessa noite, você era como que um pretexto que me arrancava subitamente desse ir e vir no nada, dizendo: ''Esse assento está reservado para você há trinta anos '', e, de repente, comecei a perceber à nossa volta, nas paredes do trem, uma série de inscrições políticas e sexuais do mais baixo calão. Frases completamente estúpidas e ofensivas aos passageiros. Seus olhos pulavam sobre aquelas palavras e as devorava e cuspia no meu cérebro para que eu as provasse ou recusasse (.) -----, ela disse. Imediatamente, lembrei-me do mais famoso monólogo de Hamlet . O anseio obscuro por soberania, o anseio de ser soberano, de amar tudo aquilo que era soberano em mim, de tocá-lo com meu cérebro e impregná-lo dele, enfeitiçava-me naquela manhã de olheiras fundas. Mas falei muito pouco à respeito disso com Miss Rogoff ao telefone. O enigma astral a intrigava à tal ponto que uma elucidação minha tornara-se para ela uma necessidade , o que não me deixou surpreso. Uma sensação de ter sequestrado o corpo astral de milhares de vítimas iguais à ela tomou conta do meu espírito, impelindo meu cogito principesco a varrer para longe toda vergonha e voltar-me novamente apenas para mim , mantendo todo o resto afastado. Ainda assim, perdi cerca de vinte e nove minutos ao sol com ela ao telefone, deliciando-me com a forma com que a experiência do Mal sempre revelava à consciência uma singularidade extrema em face do Ser. ------ Absolutamente (eu disse,antes de desligar ) Caso não chova muito forte, irei até os armazéns aqui perto procurar amoras e framboesas em conserva (.) ------, e ela riu. ----- E à noite, o que você pretende fazer (?) -----, perguntou-me. ----- Ah... a noite se manterá encolhida atrás de um céu firme e nebuloso que não proclamará nada além de sua própria permanência. Sincera, no entanto, ela quase nunca é (...) ------, eu disse, . ------ He he... isso me soa meio oco (.) ------, ela disse. ------ E você esperava por uma figura de linguagem mais apropriada, por acaso (?) ------, perguntei secamente. ------ Pode ser. Mas imagino que quando você fala assim com uma mulher com a qual acabou de ir pra cama, não deve ter muita importância (.) Eu e você somos bem parecidos nos nossos mal feitos. Sem dúvida (!) Nada do que você diz pode ser separado do sabor mais forte, e mais sujo, que você dá à suas palavras quando as coloca no papel , certo (?) ------, ela disse. ------ É verdade. Muitas vezes a gênese de uma grande obra literária pode ser entendida à imagem de um ''nascimento''. Sobretudo quando a concepção criativa refere-se, no gênio, ao elemento feminino. Mas esse elemento feminino esgota-se completamente uma vez consumada a obra. Dá vida à obra e depois se extingue. Quer que eu leia para você uns trechos que escrevi à mão agora de manhã (?) Lerei para você umas observações e pensamentos. Espere um pouco (.) ------, eu disse e, logo, assumi a VOZ de um LIVRO que afirmava minhas mais terríveis convicções: ------ ''Quero ser um monstro '' (comecei a ler no meu bloco) ''Um furacão. Um incêndio. Tudo que é humano me é estranho. Transgrido todas as leis que os homens estabelecem entre si por puro prazer; não tendo nenhum objetivo concreto, piso em cima de todos os valores importantes por divertimento; nada do que é, foi ou será pode me definir ou me limitar. No entanto, aqui estou eu: existo (!) E serei o sopro gelado que aniquilará toda a vida. Não importa o buraco nojento onde eu esteja caído, viajando entre a lucidez e o transe astral, sempre me vejo como um monarca pensativo e temido, eternamente separado de seus súditos pelos infinitos tabus e ambivalências do sagrado. A fatalidade da ironia, o destino amargamente irônico da criação poética é que, ao se consumar, dá novamente à luz seu criador supremo. Reste sobre a terra apenas um vestígio seu, calmo e belo, rodeado de um ''luxo extraordinário'' ------ lá estará ele de novo, suas quimeras , será ele aquela que saberá estrangular-te. Ele te sufocará (!) '' ------, eu disse.
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----- Bem (Liz disse) você certamente sabe usar a cabeça. Deve haver um poço enorme dentro da sua. No meu caso, o lírio do vale é minha flor de nascimento. Belo, mas venenoso. E imagino que, no seu, caso de uma obra-resultado de tão profunda ''necessidade'',cujo estilo é uma arma forjada com intenções assustadoramente precisas, do qual cada imagem, cada raciocínio resume tão claramente tudo, não pode de repente falar de outra coisa, certo (?) ------, perguntou-me. ----- Certo , mas nem sempre. Em outros planos, o trincamento da monotonia pode nascer, justamente, de um estado de desocupação mental. Foi o que afirmou Freud, insistindo sobre as virtudes da sublimação, com aquela confiança tão comovente nos poderes da consciência e da expressão que ele havia conservado. Mas as coisas não são tão simples quanto Freud gostaria. É preciso dizer: há outro nível da mesma experiência, no qual vemos Michelangelo tornar-se cada vez mais atormentado, Goya cada vez mais possuído, e Holderlin cada vez mais louco, mergulhando demasiadamente fundo no movimento do devir poético. No meu caso, sempre preferi viver à cavalo. Sempre entrando na vida e na mente dos outros como um ''grande de Espanha'' na cátedra de Sevilha. Muitas de minhas bravatas são frágeis, mas sempre muito significativas (.) -----, eu disse. Devia estar parecendo-lhe tão prudente com as palavras naquela tarde, que em momento algum ela viu em mim um fanático, o que talvez eu fosse no meu íntimo. Novamente, a atração pelo meu labirinto, maelstrom recorrente de voz neutra e ameaçadora. E não podia ser só minha cara a responsável pela exigência insólita de renúncia à superfície, pelo apelo à descodificação total da vida. Minha exigência era, para Miss Rogoff, a fonte de uma gigantesca encarnação espectral, de algo vasto demais para ser posto em prática à qualquer hora do dia. ------ É muito raro (ela disse) encontrar alguém com quem eu possa ter uma conversa como essa. Mas creio que o bem que essa conversa está me fazendo deve ser incentivado, a ponto de tomar a forma de um debate com outras pessoas (.) -----, depois, espontaneamente declarou como estava achando meu último livro ''absorvente''. E provavelmente, não estava mentindo. Ela lia muitos livros, e com uma amplitude de compreensão e julgamento bem mais larga que a de suas amigas, que , se não encontrassem num livro significação cosmética e publicitária, a coisa toda não prestava. Além do mais , que ameaça eu podia representar para uma estrela famosa ? ------ Mas porque seus livros exigem de suas leitoras tanta auto-transformação ? Porque suas histórias nunca partem daquilo que lhes é pelo menos um pouco familiar ? Porque buscam sempre aquilo que nunca foi antes pensado, nem dito, nem ouvido e nem visto ?? Porque priva suas leitoras do mundo, dando-lhes como morada unicamente o mais profundo abismo da consciência ? Porque atravessá-las a todo momento pelos seus fantasmas, nos quais elas não acreditam e que não lhes dizem nada de especial, provocando-lhes apenas um ligeiro mal-estar , evocado por uma loucura aflitiva e sem nome (?) No entanto, apenas lendo seus livros, é que ouvimos uma fala que não simplesmente fala, como num livro comum, mas que ''é''. Nela, nada começa, nem termina, ela continua sempre e sempre recomeça de qualquer ponto, sem explicação (.) ------, ela disse. Por baixo de toda sua civilidade, quanta fibra !, e um lado muito generoso quando ela conseguia relaxar, o que não acontecia com frequência. Quando relaxava, era fácil perceber dentro dela alguma coisa tateando em busca de fazer o que era o certo. E era assim, quando ela me lia ou prestava atenção em mim. Mas como não queria confiar cegamente no julgamento dela por muito tempo, eu disse: ----- Para além de todos seus 'dados'' sem encanto ou felicidade, o mundo dos homens não é inteiramente o efeito de uma imaginação, de uma ficção (?) Claro que é (!) Efeito frequentemente maravilhoso, e mais frequentemente ainda angustiante, ameaçador e adrenalínico. Socialmente, minha magnificência, muitas vezes presa voluntariamente dentro de um quarto, bem mais sutil, bem menos imponente que a de Luís XVI em Versalhes, mas fundada exatamente da mesma maneira. A pompa verbal da qual eu raramente prescindo, está, no entanto, sempre coberta de um membrana de gravidade eminente, quando evoco os fantasmas da minha masmorra, igual à um Apocalipse invisível. Um ator, sustentando nos próprios ombros o fardo de uma obra tão gigantesca, que até quando ele se cala ouvimos os rangidos de sua cama no meio da noite; fibras rasgam-se diante dos seus olhos, e seu êxtase é percorrido por criaturas sem corpo que estão em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo,estremecendo luminosamente em sua visão numa espécie de frequência ondulatória que provoca o temor, a admiração e a cobiça de sua consciência, alternada e simultaneamente. Essa é a verdadeira luz do tempo que eu habito.
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Dorothy ria. ----- E do que é feito um espectro, K (?) ----, perguntou-me ela. Naquele momento, ela também me parecia dedicada à idéias de conduta existencial já completamente desacreditadas pela sociedade. A única diferença era que ela tinha dinheiro, e seus desvios eram conhecidos, e eu não só era pobre, como meus padrões comportamentais estavam perdidos num passado remoto da humanidade. ----- Um espectro é basicamente constituído de signos, ou se preferir, de ''assinaturas'' ; cifras ou monogramas arranhados pelo tempo sobre as coisas. E também por ''hecceidades''. Para um espectro, o decisivo não é a passagem de conhecimento à conhecimento, mas o salto dentro do conhecimento com o próprio corpo, como se tratasse de um todo. Esse é o signo de autenticidade de um espectro, que o distingue radicalmente de todos os seres humanos de série fabricados por um molde social. Todo espectro contém, necessariamente, um grãozinho de contra-senso, como no padrão das tapeçarias antigas, nas quais se descobria sempre um pequeno desvio fatal em relação ao seu desenvolvimento regular. (.) -----, eu disse. Não fôra meu comportamento inicial em relação à ela que mudara, mas a forma com que eu manipulava as palavras dentro de sua mente. Formas e signos que pareciam estar ausentes de nossa interação, antes de sairmos para passear no World Financial Center, onde ela pretendia me explicar o processo de recuperação do Lower Manhattan e os moldes de arquitetura urbana de Cesar Pelli e Associados. Ali havia quatro imponentes torres de escritórios alojando algumas das maiores empresas financeiras do mundo. ----- O Winter Garden é todo de aço e vidro (ela disse) Mais de dois mil painéis tiveram que ser repostos após o 11 de setembro (.) ------, concluiu. Não a honra de sua companhia em si, mas a palavra ''honra '' roçando meus lábios à todo momento; não os impulsos virtuosos da deriva urbana informativa, , mas os termos representativos, interjeições e onomatopéias, transformadas em sua voz no maior dos acontecimentos urbanos de Nova York; não, ainda, a compaixão, mas o que era a expressão da compaixão ?? Exprimir compaixão diante de um desastre parecia de uma premência mortal para ela, naquele momento; exprimir o som sufocado da esperança e do desejo de milhares de vítimas ceifadas como moscas. Mas tais coisas, há muito, haviam sido suprimidas como ilícitas dentro de mim. Qualquer identificação com o mundo me parecia um atoleiro de falsificações. Às vezes, no máximo, transpareciam como cifras ou vagas figuras rabiscadas em vidraças de edifícios destinados à demolição; mas naquele momento, sobrava em mim somente uma terrível mudez a respeito. Até que eu disse: ------ Agora, os arquitetos criaram algo novo (?) Não creio, apesar das 45 lojas e restaurantes que dão para a praça e a marina à beira do Hudson, há quase cem anos alguém chamado Paul Scheerbart já dissera que ''era possível falar de uma cultura do vidro'', e que ''o novo ambiente de vidro transformaria radicalmente as pessoas ''; e ainda que ''Esperava que a nova cultura do vidro não encontrasse opositores''. Bem, aqui estamos nós; particularmente, estou adorando (.) -----, eu disse, descendo com ela a escadaria de mármore que levava ao Winter Garden. Ali, palmeiras de 20 metros do deserto de Mojave criavam uma versão moderna das palm court antigas (.) ------ É mais um lugar de lazer para a maioria das pessoas. Até os críticos de arquitetura mais severos gostam disso aqui. A abóbada de vidro tem quase 40 metros de altura ; e a escada em forma de ampulheta acomoda platéias durante concertos no jardim lá embaixo (.) -----, ela disse. Mas sobre as coisas mais essenciais do nosso passeio, quase nada podia ser dito. Ainda assim, eu sabia como fazer os sinais necessários para ativar outro tipo de comunicação, bem mais sutil e eficiente. O suficiente para que, enquanto eu olhava as folhas das palmeiras e seus mínimos movimentos, Dorothy subitamente se apoderasse daquela linguagem em mim, de tal modo que esta consumou num instante, para mim, o enlace com ela. O tom de Dorothy estava agora cheio de matizes não-identificáveis, tão espectrais como os meus, e um certo mal estar , ou estranhamento, quase interferiu com sua respiração. Muito lentamente foi que ela voltou a se concentrar, consciente de certa ansiedade impressa em seu rosto. Eu permanecia silencioso, manipulando a atenção dos seus olhos como se se tratasse de manobrar um transatlântico entre geleiras. Em meio às palmeiras mojave ela era conspicuamente branca,como sua tia. A primavera daquela tia ! Na cabeça, estava usando um lenço esverdeado, tão exuberante quanto o verde que admirávamos nas palmeiras. Pela inclinação do seus ombros e a expressão nos seus lábios vermelhos, parecia-me apaixonada, mas disposta a aceitar qualquer interrupção do seu desejo. Eu me perguntava, então, se devia segurar sua cabeça com as mãos ou roçar discretamente meu braço nos seus seios. Aquele tipo de jogo humano (eu pensava ) sempre se dava a conhecer pelo modo como a centelha da paixão, no plano do corpo, saltava de um centro para o outro, mobilizando ora este, ora aquele órgão, concentrando e circunscrevendo nele toda a existência. ----- Formidável. Interessante. Impressionante (.) ----- , eu disse. Dinheiro, posição, vantagens... eu realmente não tinha projetos de vida nem ilusões, era um espectro. Vivia apenas de tempestades cerebrais, dentro de um esquema que não deixava de ser sedutor para mim. Mas me apaixonar (?), eu me perguntava ceticamente. Porque tudo que era emocional no mundo tinha que ser tão superabundante, comprometendo tanto nossos poderes psíquicos (?) No meu caso era diferente: quando encontrava meu alvo, eu me limitava a disparar. E mesmo sendo incapaz de emocionar-me, penso que seria um pecado não fazê-lo.
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----- Venha para o sol e aproveite o tempo (.) -----, Liz disse. Ela se sentia muito melhor quando eu me interessava pelo que dizia, como quando fiquei contente por ela ter compreendido minha ‘’filosofia do espectro’’. Não havia mais substitutos para essas sensações involuntárias na sua vida. ------ Você não vai abandonar essa idéia , não é (?) Seria uma pena. Você foi feito para escrever a respeito, e estou convencida de que tudo quanto escreve sobre espectralidade é real e que algo terrível acontecerá se não continuar (.) -----, ela disse. Miss Rogoff via em mim, antes de tudo, uma aspiração de autonomia absoluta, sem a qual meu ‘’projeto literário’’, minha ‘’obra aberta’’, não era possível. ------ Ninguém consegue interferir com isso (ela disse) (.) ------, quando estava por perto, Dorothy gostava de ouvir essas conversas. Tenho para mim que deixavam-na excitada; e conversar assim ao sol, na varanda da tia, fazia Dorothy sentir-se forte. ----- Acho que a gente se entende bem -----, ela disse para a tia, referindo-se à mim : ----- Por mais durão que ele seja, sua dureza não passa de um vácuo; sua autonomia é um vácuo; sua independência é um vácuo. Sua obra é o relato sem testemunhas de um fantasma que repete tudo sozinho consigo mesmo. Sua leveza espectral e seu jeito alegre brotam sempre pouco a pouco, pois ele só começa a narrar a si mesmo depois que seu descaramento lança o primeiro dado sobre a mesa; um sádico atravessando o vácuo, mas permitindo-se, ao mesmo tempo, inofensivos desejos de contos de fada. Suas frases ondulam pensativas diante da leitora ou arqueiam-se subitamente em sinal de recusa; os vários ramais de diálogos mostram-se ora atenciosos, ora arrogantes, rebelando-se contra as bruscas tomadas de fôlego de quem os lê. Há trechos em que torna-se imprescindível que a leitora avance sufocada, estremecendo dos pés à cabeça, para ser socorrida ou abandonada somente no final. E geralmente, ela é abandonada. Cada capítulo lança sobre o anterior, e aos pés da leitora, uma sombra espessa, enquanto uma leve aragem nupcial anuncia o capítulo seguinte; nenhum prazo é concedido à interpretação, até que a esfera rebentando de imagens caia dentro de seu compartimento. Enquanto essa esfera incandescente gira no vazio a leitora fica à espreita, palpitando por baixo de uma superfície recatada, para ver de que modo o entusiasmo inflamado do autor, apelando para todos seus sentidos, pode afinar seus baixos (.) -----, ela disse. Naquele momento, o sândalo do sabonete que Dorothy usara no banho evaporava-se ao sol, junto com suas palavras. E tais palavras me pareciam apertadas demais em sua cabeça para que eu continuasse molhando meus ouvidos nelas. Uma quantidade enorme de partículas brilhantes se espalhava sobre os vasos de plantas da varanda, e lá onde os raios solares alcançavam esse orvalho, as cores do arco-íris brilhavam , espectrais, como o esperma galático do outro mundo. ----- A espectralidade é um forma de vida (eu disse) Começa somente depois que a pessoa social acaba e assim adquire, em relação às pessoas, a graça e a astúcia daquilo que é completo e inimitável, a elegância e a precisão cirúrgica de quem não tem mais nada diante de si. É mais simples para um espectro simular uma vida de carne e osso, em certas ocasiões, do que exibir-se à leitora diretamente. É assim que a língua espectral ao seu modo freme, acena e sussurra e que, com esse esforço, assume sua máxima condição litúrgica, impondo à leitora a observância de regras exigentes e litanias. A partir daí, todas as palavras piscam à ela, como estrelas, fazendo-lhe sinais preciosos ou escorrendo como larvas de eternidade em sua consciência. Por um longo momento, o texto inteiro fica parado à sua frente como uma gigantesca aposta, e o regulamento do espectro a obrigará uma vez mais a conter-se. No céu de sua cabeça, logo em seguida, uma série de gases entrará em turbilhão, numa luta invisível para apagar todos os vestígios sociais e encontrar-se com os arquétipos. Neles é que se encontra a Eternidade, lar do espectro. -----, eu disse.
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Meu sentimento por um novo começo era realmente muito forte, por isso aluguei um apartamento de um andar inteiro, que dava para o lado norte de Washington Square, e fui com Miss Rogoff de carro até Montauk buscar o resto das minhas caixas na casa de praia de uma amiga. Medida pelos ponteiros do relógio, a viagem fôra curta. Nas horas de menor intensidade do trânsito , podia-se avançar com uma deslumbrante rapidez por essa obra de mestre que era a estrada amarela e cinzenta. E Liz sabia como guiar nela, era uma motorista sem falhas num carro sem falhas. ----- Se alguma hora você sentir novamente vontade de passar uma semana inteira comigo, no meu apartamento (ela disse)vista um casaco e pegue um táxi ; penso que levaria horas tentando explicar qualquer outra solução que eliminasse a necessidade de uma escolha ou definição; ainda assim, parece-me duvidoso que você entenda o que estou dizendo. O entendimento nunca foi o alicerce de suas decisões, K (.) Esse alicerce, em você, é um ''bicho-papão'' ao qual você recorre sempre que lhe falta sabedoria (.) uma alegoria de autoconsciência (.) -----, ela disse, enquanto eu batia levemente no vidro da janela do carro com uma moeda. ----- Está tudo ok, Liz (.) Posso fumar aqui dentro ?) ----, perguntei, quando paramos no pedágio. Acendi meu cigarro ao seu lado e , olhando suas mãos deslizarem pelo volante, continuei: ----- Je suis étant et me voyant; me voyant me voir, et ainsi de suite (.. já escrevi muito, nessa vida, sobre o estranho poder de cura associado às mãos de certas mulheres. Uma vez, cheguei mesmo a escrever que '' os seus movimentos são extremamente expressivos, mas seria quase impossível descrever essa expressão.. É como se contassem uma história (.) '' ; Mas nada de Mozart, dessa vez. Dessa vez, pandemonium, em virtude do qual qualquer alicerce de decisão se torna uma ficção teatral provisória, ou um limite impossível. Ainda assim, essa parece ser a melhor ''solução''. Um olho que se vê a si mesmo em um espelho. Então, gesticulamos, pomos a língua de fora... e logo começamos a desconfiar que um deus maligno se diverte a nossas custas diminuindo loucamente a velocidade da luz. Segundo Valéry: ''Estás a 40 cm do espelho. Antes recebia tua imagem em 2,666 milésimos de segundo. Mas o demônio se diverte agora tornando o éter espesso. E agora tu te vês após um minuto, um dia, um ano, um século, ad libitum... '' O que acontece entre uma coisa e ela mesma é frequentemente paradoxal (.) -----, eu disse, observando as evoluções de Liz ao volante. Talvez eu me encontrasse numa fase em que um homem que já fora duro, principalmente consigo mesmo, começa a ansiar pelo suave deleite de uma massagem em seus ombros, ou na parte detrás de seu pescoço, onde os nódulos parecem estar mais duros. Sentia-me ligado agora com o melhor, o mais fino, o supremo veículo da terra. Não havia comparação com a ''action painting'', quando o assunto era um processo de cura natural; e, naquele momento, a ''cena sem sujeito'' de Wittgenstein me enchia de confiança ao lado de Miss Rogoff, no carro. E ela queria conhecer o apartamento que eu alugara em Washington Square, norte. Ele tinha portas duplas (expliquei a ela) pé direito alto, sancas ornamentais e soalho de parquê; e uma lareira com consolo lavrado. Abaixo do quarto dos fundos, havia um jardim interno bem parecido com o do hotel em Meatpacking District. ----- Deve ser lindo (ela disse) Digo: melhor que aquele quartinho boêmio, com guarda-roupa sem porta, colchão empoeirado no soalho e reproduções baratas de Modigliani nas paredes; Oh, sim, estou bem contente por você. Assim estará melhor. E num estado ''estacionário (por assim dizer) poderá ser submetido a alguns ''testes''. Mas isso é só uma parte do problema (.) -----, ela disse,enigmaticamente. ----- Estou enganado, ou você está um pouco irritada (?) ----, perguntei-lhe. ----- Estou falando de uma maneira muito amadurecida. Não vejo porque não me considerar calma e controlada . Admito, no entanto, que muitas vezes , minhas opiniões bondosas e cheias de considerações pelos outros têm o dom de exasperar algumas pessoas (.) Que tal pararmos para almoçar, e esquecermos por um instante a obscura substância que nós somos sem o saber (?) N`être plus la voix de personne... que me parle, à ma place même (??) -----, ela disse.
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A pressão política sobre mim estava passando dos limites ---- falsas acusações, depredações do meu patrimônio intelectual, ameaças de demissão, e o aparecimento do meu nome em várias listas negras que surgiam sem parar na internet. Queriam transformar o acusador em acusado. Apesar de tudo, a crise no meu relacionamento amoroso ainda não era ‘’a’’ crise. Claro, eu sabia correr riscos de ambos os lados, e no final pensava que as duas coisas se tornariam uma só, naturalmente; mas no momento eu ainda era capaz de mantê-las separadas. Fiz o caminho para o novo apartamento com Miss Rogoff conversando com ela numa voz que parecia nascer das profundidades do meu corpo. Minha ‘’autoconsciência’’, como ela disse, capturava minha sensibilidade sobre a corda da minha voz. Mas o que estava além do desejo ( eu pensava) nenhuma voz poderia exprimir. Dentro de mim, no entanto, eu possuía o ductus fluido de um apontamento sumário, que muitas vezes me alertava sobre ‘’erros ‘’ e ‘’enganos’’, e que eu chamava a me servir de suporte na maioria dos meus encontros. Naquele momento, o ductus fluía nas veias do atrito, me fazendo rir da suspeita que Liz lançava sobre mim e o meu trabalho. Sentia-me inclinado a fazer piadinhas com a ‘’Fera’’. Ela queria que eu me submetesse aos seus ’’testes’’ sem recriminações, protegendo-se por trás do seu prestígio social e fingindo que estava tentando fazer alguma coisa importante por mim. E certamente faria, a julgar pelo seus gestos. Mas o que dizer de todos os meus negócios inacabados (?) Para mim, tudo que eu fazia e sentia era uma façanha, e sem tocar no assunto, sem praticamente falar, eu tentava comunicar disso alguma coisa à ela, fortificá-la em seu pensamento. E mesmo não podendo identificá-la com precisão, ela queria saber mais: ----- Seu compromisso comigo é o de se purificar um pouco, antes de mais nada(.) Lembra (?) Não vou mais tolerar esse sentimento de traição que você instala em mim sutilmente, sem nunca revelar nada (.) ------, ela disse. Para justificar todo meu esforço psicológico naquele momento, disse para mim mesmo que tudo estava perto de desabar . ------ Você sabe que se meter ‘’certas coisas’’ no meio do nosso assunto, acabaremos sem nos falar para o resto da vida. Não sabe (?) -----, perguntou-me. Aquilo já era uma pontinha de briga séria, nada agradável. Quando Liz discutia sobre as ‘’coisas que mais importavam para ela ‘’, nunca se dava por vencida. Sobretudo naquela ocasião, em que ter meu espaço próprio representava uma maior propensão à não me importar de sair perdendo. Ela olhava firme para mim, batendo firme seus dedos sobre a mesa da sala. Turbulenta, ela tentava distorcer a questão, atropelando tudo o que eu dizia com : ------ ‘’Não insulte minha inteligência (!) ‘’ ------, sua energia para brigar era impressionante: ------ Não dou a mínima se ninguém a não ser eu entendo essas coisas (!) Se você tivesse a menor idéia de como a sociedade americana está organizada, já teria modificado seu comportamento(.) -----, bradava ela. E se punha especialmente incendiária quando tentava me botar no lugar como mero escrevinhador da internet: ------ O que odeio com mais raiva em você é me pedir ‘’Por favor, explique-me de que diabo você está falando ‘’ (.)-----, parecia não existir, para ela, em tudo o que eu fazia ou dizia, nem um mínimo detalhe sem importância, . Tudo que ela pensava, justamente porque era’’ela ‘’ quem pensava, tinha que ser ‘’decisivo’’. E ela realmente pretendia encontrar alguma validade nisso. ----- Sua teimosia é algo impressionante, K (.) De fato, não é um cara mole de se convencer (.) E olha que eu sei , como ninguém, persuadir os outros de que estou falando sério; mas o seu antagonismo parece inesgotável (!) -----, ela disse. Aquilo me fazia sentir a pressão por todos os lados do espectro social, o que me preocupava. Eu me perguntava que tipo de ‘’narrativa’’’ seria capaz de produzir uma condição mais favorável para mim. Em todo caso, a tensão nervosa dela era um dique que resistiria (eu pensava) à corrente de qualquer narrativa. Restava-me apenas constatar que seria derrubado a qualquer momento . Parecia-me impossível, então, induzir nela uma inclinação suficientemente forte para arrastar para o mar do esquecimento feliz todos os motivos para brigar comigo que ela encontrava pelo caminho. ------ Você só anda na companhia de moças duvidosas (.) Tudo o que me impele para você, ora nesta, ora naquela ocasião, é puro acidente (.) Você se considera um ator grandioso, capaz de representar na vida real qualquer papel ... mas não é ator coisa nenhuma, apenas tem a cara de pau de se meter em qualquer confusão e pôr aboca no mundo como um maluco (.) Isso (realmente) nunca lhe faltou. Mas ser um ator (?) JAMAIS (!) , você representa todos os papéis do mesmo jeito. Sempre aquele papo furado sobre arte e vida, como se estivesse jogando cartas num canto enfumaçado (.) Você deve se olhar no espelho e se considerar um instrumento da história... que a história o trouxe para a capital do mundo para corrigir os erros da sociedade, enquanto os seus ficam por isso mesmo (.) Sua única vocação real é para ser alguém ininteligível. Um terreno eternamente por explorar. Dois pontos, reticências... é isso, então (?) ‘’Uma outra maneira de se aproximar da vida ‘’ (?) de ‘’tocar o mundo ‘’ (?), como você diz... E o que esperar disso (?) Descobrir coisas estranhas sobre a mente humana, condensar em pensamentos alguma essência secreta de experiências mentais (?) Entramos no meio de alguma situação confusa e agora teremos que concluí-la(.) Resta descobrir como (.) ------, ela disse.
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De lábios um pouco apertados, e com a cara um pouco amarrada, telefonei para Dorothy enquanto fazia meus cálculos sobre os signos astrais de Liz. Naquele momento, a generalidade do amor me parecia mais serial que nunca; só era possível vivê-los profundamente, tendo cada um deles em vista da série à qual pertenciam. No telefone, Dorothy parecia-me parte de um filme mudo no qual eu também atuava. Demorei para introduzir-me na questão, mas numa encenação desmiolada, uma súbita invenção de puro exagero, disse-lhe que ''passear'', no espanhol ladino que os sefardistas falavam quando foram expulsos da Espanha, era um termo particularmente feliz para o dia. E repeti a fórmula, uma hora depois, quando ela retornou o telefonema inicial para aceitar meu convite. Um de meus papéis prediletos: O Suplicante. ----- Podemos tomar a linha Z ou o trem 6, de Lexington Avenue para o Canal St. , ou o ônibus M1-103. O M15 também serve o Lower East Side. Suplico a você que vá comigo hoje à Chinatown e Little Italy(...) Por favor, não me deixe só (!) -----, eu disse, como se não fosse um simples ''paseo'' que estivesse em jogo, mas a redenção da humanidade. Ou ainda, o movimento infinito de auto-apresentação do ser. Um otário dissimulado, parcialmente iludido pela própria aflição, vindo para a frente do palco suplicar. Mas houve uma emoção que Dorothy não conseguiu dissimular em si mesma quando me ouviu suplicar daquele jeito. Pelo menos isso (pensei eu). Como diria Epiteto, nossos modos de ser ''fazem ginástica'', rejeitando, frequentemente, seguir qualquer linha racional. ----- Todos deveriam ter um Lower East Side nessa vida (.) -----, eu disse, antes de desligar o telefone. Dorothy fora arrebatada por aquele impulso que quase todo mundo experimenta quando alguém querido está perto de desmoronar. A melhor mulher do mundo . Eu te amo, D. Minha cena ao telefone havia solapado completamente sua capacidade de observação, permitindo-me operar uma guinada de cento e oitenta graus no meu estado de espírito: um novo arado contra a página em branco daquele dia faria de mim uma companhia agradável e bem humorada ao lado dela. Dorothy definitivamente engolira a justificação melodramática da minha infâmia, assim que, quando nos encontramos no metrô, acreditei recompensá-la segurando-a pela cintura e beijando sua boca. Isso, àquela altura, já era permitido entre nós; o novo código dos nossos encontros reconhecia agora o alto valor da impulsividade e do calor humano. E sem dúvida nenhuma, os sentimentos dela eram tão fortes quanto os meus, ao contrário dos de Liz. Ainda assim, perseverava na minha conduta um incômodo resíduo de auto-propaganda, adquirido talvez do prolongado contato com a mídia, e que denunciava certa submissão minha ao ''sistema''. A democracia americana era propagandística até o osso. Não havia dúvidas de que o mundo inteiro expressava-se por meio de uma propaganda social, histórica e política, mas na América, quando você tentava emitir seus signos mundanos, de amor ou de sexo, eles caíam num vazio astronômico, transformando qualquer conversação mais ou menos inteligente numa mera repetição dos princípios liberais. Apesar disso, Dorothy certamente não ficou desapontada comigo ao perceber que eu pretendia transformar nossa amizade num caso amoroso o mais depressa possível. ----- Antes das duas, de preferência (.) -----, eu disse. Um homem condenado, ''suplicando'' por amor e afeição. ------ Você me parece mesmo ferrado (.) -----, ela disse, ao notar que seus sentimentos vinham adquirindo uma importância quase cômica dentro de mim. ------ Nada nessa vida (eu disse à ela) provoca tanto nossa curiosidade quanto saber o que de fato se passa na cabeça de um tolo (.) -----, e no geral, creio que eu era mesmo tolo. Imediatamente tornou-se cômico, para ela, perceber que um homem como eu, que punha tanta ênfase na própria liberdade, pudesse admitir de um instante para o outro tamanho controle sobre seus pensamentos e emoções. Moralmente, Dorothy me parecia agora ligeiramente ''incrédula'' ; o pressuposto do meu heroísmo melodramático era agora a mais pura indiscrição, o ''mal du siécle''. ----- Acho que a ocupação obsessiva com a arte (ela disse) e a ''questão social'', foi o que te pôs assim meio doente (.) Sua ''doença'' agora é um emblema social, tal como a loucura era para os Antigos (.) Esquizofrênicos, em geral, têm esse faro todo especial para apreender o verdadeiro estado da sociedade, a atmosfera em que respiram seus contemporâneos (.) Em indivíduos como você, que não têm papas na língua, os nervos são como fibras inspiradas, como aquelas fibras que se estendem, com rejuvenescimentos insatisfeitos , com meandros cheios de nostalgia, nos móveis e na fachada do prédio que Stanford White projetou para o antigo Bowery Saving Bank, em 1894 (.) -----, ela disse, enquanto seguíamos a pé pela Grand Street com a Mulberry, onde Joey Gallo fôra assassinado. ------ Tenho que admitir (eu disse) que , desde novo, minha imagem preferida para isso é a de um Dante que, à aproximação do Inferno, se transforma instantaneamente num feixe de fibras nervosas frementes no ar. Alguém cujo poder supremo é a capacidade de desejar o próprio desejo (.) -----, eu disse.
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Ao chegar à varanda do apartamento de Liz, na manhã seguinte, puxei uma cadeira para sentar-me fora da luz, já prevendo algumas dificuldades. As associações subjetivas, no entanto, só existiam para serem ultrapassadas no caminho para uma realidade superior. Naquela hora, eu ainda me encontrava na atitude noturna, da noite passada, que as atitudes mais agradáveis de Dorothy tinham, por sua vez, exigido de mim. Mas agora tratava-se de fugir do relógio, estabelecendo distâncias variáveis entre o meu corpo e as cadeias associativas dos meus estados de alma. Uma surda batalha de substituições instantâneas em que alguma paciência era necessária. Sentia-me um pouco preocupado, pois estava extremamente sensível a todo tipo de sinais. Pensava que não poderia existir nada tão grande e tão pequeno nas pessoas, nada mais audacioso, cruelmente criativo e rancoroso, quanto as manobras da vingança. Qualquer outra mulher estaria com a tez febril, afogueada, mas Liz estava de uma brancura de cera. Sua voz, que em suas entonações parecia querer imitar a de Sophia Loren, não continha o menor traço de divertimento. Suas sobrancelhas castanhas, pintadas como asas, erguiam-se sem parar. Por vezes, parecia querer dar a impressão de quem pede auxílio, mas também era visível que isso não lhe era nada fácil, pois percebia-se o quanto estava zangada. Na verdade, o que ela queria ouvir uma vez mais, como reverso, como ''conselho'' da boca de outro, era antes sua própria opinião, já previamente tomada. Mesmo o franzir de suas sobrancelhas parecia custar-lhe um sério esforço de concentração. Alguma coisa realmente descomunal estava se passando em seu espírito. Estava vestida com uma blusa decotada de seda e uma minissaia, com uma faixa verde cobrindo a parte de cima de suas coxas. O cabelo curto penteado de lado, a pele repleta de atrativos sexuais ; e do lóbulo de suas orelhas pendiam duas grandes argolas de prata. Era uma mulher adulta vestida jovialmente, eroticamente brincando de adolescente, embora ninguém pudesse tomá-la por uma adolescente. Sentado perto dela eu não sentia, porém, seu habitual perfume arábico, e sim os eflúvios muito atrativos de uma mulher madura, o cheiro de lágrimas adocicadas provenientes do mais íntimo das mulheres. Cada palavra dela calava fundo em mim : ------ Lembra o que Burton dizia em Anatomia da Melancolia (?) Que todos nós temos predisposição para a melancolia, mas só alguns adquirem o hábito dela. E a gente adquire o hábito da melancolia ao sentir-se perdido. Sexo e estilo em demasia também provocam isso. Até mesmo seu cabelo hoje está sugerindo algum tipo de perversão, K (.) Por outro lado, sua natureza destrutiva te torna também jovial e alegre. Destruir, desfazer, dissolver e destituir; tudo isso remove os vestígios de nossa própria idade. Destruir cria ''espaços'', e esvazia a pessoa de sentimentos pesados. O caráter destrutivo está sempre pronto a trabalhar, é a própria natureza que lhe prescreve o ritmo (.) ------, ela disse. Mas aquilo não envolvia, curiosamente, nenhum preconceito de sua parte. Ela não sentia nenhum preconceito com relação à perversão, ou a assuntos relacionados com sexo. Devia considerar demasiado tarde em sua vida para sentir-se impressionada por tais coisas. Ela sabia que forças muito superiores ao do homem comum estavam atuando em mim, e que a qualquer momento elas podiam entrar em ação. ------- Pense só nas tragédias (eu disse) O que suscita a melancolia, a fúria, a carnificina (?) Otelo, perdido. Hamlet, perdido. Lear, perdido. Diria até que Macbeth perdera-se, ainda que por si mesmo, o que é um pouco diferente. A perdição está no coração da história. Pense na Bíblia (!) A narrativa básica é a traição e a perdição. Judas, traído. José, traído. Moisés, traído. Jó, traído. Davi, traído. Urias, traído. Jó foi traído por ninguém menos do que Deus (!) E não nos esqueçamos da traição ao próprio Deus (.) Deus, traído a todo instante, por cada um de nós (.) ------, eu disse. O golpe que eu acertara com meus medalhões históricos na raiz de nossa conversa, modificara a maneira elementar com que os nervos de Liz vinham atuando . Ela ainda continuava furiosa, ou amargurada, por minha causa. Mas agora, confrontando toda sua superfeminilidade, sua sensualidade ligeiramente abatida, eu via tudo numa claridade aumentada. A linguagem muda das coisas, variável e enganadora, era dirigida exclusivamente pela minha inteligência. Aos signos do fogo que pareciam anunciar a vitória de Clitemnestra , minha linguagem mentirosa e fragmentária, boa para as mulheres, Liz tentava, em vão, opôr uma outra, de medida justa e verdadeira. ------ Do mesmo modo que uma referência trigonométrica está exposta ao vento por todos os lados (ela disse) você expõe-se de todos os lados ao palavreado. Não vê sentido nenhum em tentar proteger-se disso. Nem sequer faz questão de ser compreendido. A incompreensão dos outros nunca lhe afetou de fato. Muito pelo contrário, frequentemente você a provoca por puro divertimento, tal como um oráculo (.) -----, ela disse. Era assim mesmo que eu (também) enxergava as coisas. Vê-la se debatendo com as arestas daquela verdade era uma coisa deliciosa. Não havia dúvida, dava-me um prazer imenso ! Mas na minha linguagem, ao contrário, só havia verdade naquilo que era feito para enganar e desviar. Só existia, para mim, verdades traídas; entregues pelo inimigo ou reveladas em pedaços. ------ Você converte em ruínas todas as impressões que os outros têm de você; não pela impressão, mas pelo caminho que as atravessa, em chamas. Eu tenho medo de você por causa das lutas internas que pode desencadear nos outros. E pela sua capacidade de revelar coisas escondidas no ar. E de uma forma rigorosamente épica e rapsódica. Muitas vezes, num mínimo de espaço, você revela tantos buracos e esconderijos da psique, que é como se certos conhecimentos vivessem numa casa de sete divisões em estilo Makart (.) -----, ela disse. Mudando cortesmente de assunto, Liz arranjara, de repente, uma novo rosto para exibir sua maravilhosa aterrissagem. O sol, pela janela, fazia sobressair toda a cortesia do mundo, refletindo-se nos seus olhos. Uma claridade como aquela, tão vívida, de um momento para o outro me deixou perturbado. A macia brancura da face de Liz, o esforço visível que ela agora fazia, e que era demonstrada pelas suas sobrancelhas, proporcionava-me um sentido apurado do extremo, cômico, particular e surpreendente da situação. Aquilo permitiu-me tomar as rédeas da negociação imediatamente, e, por fim , também as dos seus interesses. Olhei para ela e pensei : ''A cortesia, no seu papel de musa do meio-termo '' (.)
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Eu apenas queria persuadir Dorothy de uma certa coisa, mas não sabia se tal coisa lhe interessava. E não estava particularmente disposto a guerrear no caso de seu desinteresse. Eu também a teria ignorado sem esforço, seguindo o ditado de que nã há melhor surdo do que o ***. Enfim, minha mente, naquela manhã, estava se movendo como o reconhecimento profundo de uma coisa extremamente pessoal, de uma lembrança marítima e querida. E quando me dei conta, após um momento de incredulidade de Dorothy, muito do que eu estivera sentindo em outros terrenos e dias se cristalizou de repente e veio com força às minha cordas vocais: ----- Estou um pouco nervoso, Dorothy; há certos nervos esmagados em mim, de cuja existência ninguém suspeita, e que de repente vêm à tona, incendiados (.)Eles estao queimando-me agora. Na verdade, desde ontem. Quase de imediato, num café do NoLIita ontem de manhã, fumando diante de um Cinzano das onze horas, tudo isso virou literatura. Pela primeira vez, vi claro na meada como tinha ido parar em Nápoles aos vinte e tres anos, sem praticamente nenhum dinheiro. Não sou uma pessoa sentimental, mas ontem fui capaz de entesourar essas lembranças com exagero de detalhes, sem nem ao menos saber como foi que entrei nisso. Um desejo puro e sem forma de misturar discursos através de portas entreabertas me precipitou numa recapitulação espontânea de tudo. Naturalmente, se chegassem a constituir um sistema, minhas centenas de textos soltos e fragmentários só seriam capazes de constituir um sistema antiquado. Sempre fui cético a esse respeito. Seria o caso, então, de perguntar se eles não estariam mais na ordem de um programa, exaustivamente aplicado, do que de um sistema. Porém nao pretendo entrar no mérito da questão. Só quem se diverte com isso é sua tia. O fato é que quando uma pessoa fica órfão tão cedo quanto eu, cai na situação em que todas as pessoas acabam caindo um dia, só que muito mais cedo. E isso é enganoso porque, a princípio, você não tem nada para aprender com a experiência, podendo vir inclusive a tornar-se supersuscetível à entusiasmos que apenas te preparam para doutrinações duvidosas . Minha juventude foi marcada por uma longa série de interrupções nesse sentido, por bolhas de vácuo existencial onde de repente eu me via varrido para novas faixas de possibilidades sem testemunhas conhecidas.. nelas, a sobriedade era o único valor capaz de me salvar da auto-hipnose. Aquela parcimônia do espaço vital em que não ocupava apenas a cidade visível por onde eu vagava, mas todo o espaço de consciência em que eram assumidas novas posições existenciais, tornando-me presa fácil para todo tipo de vertigem do pensamento e aspirações poéticas. Em tais circunstâncias, comportar-me de maneira britânica tornou-se um dos meus mais frequentes pontos fracos: nenhuma inclinação à favor de declarações públicas de amor e afeição. Frio ??, e para piorar, em Nápoles a linguagem gestual ia muito mais longe do que em qualquer outro lugar da Itália. A conversa dos napolitanos, para um forasteiro, era completamente indecifrável num primeiro momento. Seus ouvidos, narizes, olhos, os peitos e os ombros dos napolitanos, são postos de sinalização que seus dedos ocupam enquanto eles falam. Os cafés de Nápoles, nos quais eu entrava após empregar-me nas docas, eram verdadeiros laboratórios desse processo de interpenetração gestual. Antípodas dos cafés literários vienenses, dedicados à burguesia do ''Norte'' ; os de Nápoles eram café populares, políticos, abertos e despidos, nos quais logo me pareceu impossível sentar-me para escrever algo, ou mesmo permanecer neles muito tempo, contemplativamente. No entanto, era o melhor espresso da Itália. E a distribuição dos gestos solícitos e toques de impaciência, , que davam nas minhas vistas, se encontravam também na especialização caprichosa do erotismo das napolitanas, com uma regularidade que excluía o acaso. E elas não se incomodavam muito com o jeito com que comecei a cortejar todas, em menos de um mês, abandonado meus modos britânicos. Naquele período de ilegalidade, eu tentava desesperadamente fazer contato,ganhar um coração, incubar uma alma e seus préstimos de cidadã regular. Estava completamente perdido, repetindo comigo mesmo a todo instante: ''Vedere Napoli e poi mori ''. Alcancei parcialmente meus objetivos iniciais atraindo o interesse de garçonetes e estudantes de literatura; depois, uma técnica de laboratório farmacêutico de Sorrento e uma manicuri. Desenvolvi uma facilidade incrível para sussurrar ''eu te amo'' nos ouvidos das mulheres, sempre preocupado em refinar a técnica em cada ocasião. Assim que acumulei um grande número de histórias engraçadas sobre o divertido gosto de regatear das napolitanas. Praticamente não saía da Toledo, a rua mais movimentada da cidade; de ambos os lados daquela rua se concentrava de forma rude e sedutora tudo o que chegava no porto, onde eu trabalhava. Sufocada pelo pitoresco cinzento , minha vida ali era porosa e híbrida, totalmente submergida nas ondas da comunidade. A antiga miséria social de Nápoles deixara um rastro histórico na cidade, de expansão de fronteiras sociais, que favorecia incrivelmente a liberdade de espírito. Mais ou menos como nas favelas do Brasil. A coisa mais perfeita que resultara disto, historicamente, a meu ver, tinha sido Sofia Loren, ainda que (ahimé !) envolvida numa grande engrenagem de interesses industriais, mas ''perfeitamente'' capaz de declanchar na Ciociara, de Vittorio de Sica. Antiga popalona de Nápoles (!) Quanto mais pobre era o bairro, mais movimentados e numerosos eram seus bares. E ali só se cozinhava à risca, seguindo rigorosamente velhas receitas corroboradas pela feitiçaria gastronômica italiana. A forma como, na menor daquelas ''trattorias'', peixe e carne ficavam expostas nas vitrines, escapavam ao hábito e às exigências dos ''conhecedores''. Livres da grandiosidade holandesa, aquele povo de marinheiros loucos punha tudo o que pescava à vista no mercado do peixe: estrelas-do-mar, caranguejos, polvos saídos das águas do golfo, muitas vezes consumidos crus, apenas com algumas gotas de limão. ----- Bestie... sono tutti bestie(.) ------, Sardinaglia me disse no dia da festa na Piedrigrotta; ele era um jovem de rosto engraçado, que cursava literatura, e se auto-proclamava futurista e fascista. Do dia 7 para o 8 de setembro, de 2003, o alarido selvagem nas ruas de Nápoles o estava enchendo de hostilidade para com o povo, o que tornou sua companhia detestável para mim. Afinal, ninguém era mais do povo que eu, naquele momento. ------ Um futurista (eu disse à ele) deve ser forte e não se deixar impressionar por nada, exceto por sua própria fraqueza e estupidez (.) -----, declarei sentenciosamente. Depois contei-lhe que tinha um caso com uma ''ordinanzza'' de um laboratória farmacêutico de Sorrento, e que pretendia me encontrar com Jeanette dali há alguns minutos. ----- Bella ragazza (.) -----, eu disse. Depois disse que estava na hora de ir. Seu mau humor estava me deixando toldado. Me livrei dele e parti para encontrar Jeanette na praia, onde os pinheiros do Giardino Pubblico formavam um claustro convidativo. Ela sempre ficava comigo quando vinha à cidade , e quando entramos no jardim, a chuva de fogos de artifício aninhou-se sobre nossas cabeças nas copas das árvores. Ela disse=me que nunca coucayed com nenhum outro marinheiro enquanto o Owanda esteve no porto, e eu a tratava com consideração, apesar de não tomar nosso caso a sério. Meu dinheiro então já valia alguma coisa, e as pedras preciosas que eu carregava no bolso valiam muito mais que dinheiro para as mademosels . ---- Uma antiga lista folclórica dos sete pecados capitais (eu disse à Jeanette naquela noite) atribui o orgulho à Gênova; a avareza à Florença (ou o que os alemães chamam de o ''florentino amor grego '') ; a luxúria à Veneza; a ira à Bolonha; a gula à Milão; a inveja à Roma e a preguiça à Nápoles. Mas aqui, quando alguém baixa as cortinas sobre a janela de uma casa, num Domingo de festa como esse, lá dentro um outro tipo de bandeira é içada. Viajantes incapazes de captar essas nuances tem pouca coisa para ver e fazer aqui, não acha (?) Há inclusive um velho soneto de Nerval onde ele clama a imediata restituição do ''Pausillipe et la mer d´Italie '' e de ''comer macarrão com as mãos'' (.) -----, eu disse.
FIM
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