terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

De Portland a Butte, escrito em Spokane.

Postos de gasolina hipsters e cidades do tamanho de Portland ---- cruzando o escuro Columbia pela ponte no antigo pulso aventureiro e comercial do rio interditado em Portland pelo trabalho da base naval ; as mesmas cercas de arame com placas com que o Mississipi é interditado em alguns pontos . Defeito do estilo-diário : fazer mármore demais com o ponto e vírgula ; o diário parnasiano (rebuscado com os substantivos e negligente com os verbos ) cuida do ‘’espetáculo’’ e negligencia o ‘’acontecimento ‘’ . O movimento que desarranja as linhas na história ‘’repleta de sofrimento ‘’ da literatura americana, é o encontro entre naturalismo e sobrenaturalismo em Emerson e Whitman ---- as frases tornam-se colossos erguidos sobre firmes articulações . Fala-se de tudo conservando a dignidade do estilo . A arte como uma indústria no pensamento da noite ---- nenhum segmento seu podendo ser interrompido . Nenhum esforço passar de uma frase para outra. Segunda à noite em Portland (o páthos das distância ) com aquela exaltação ao mesmo tempo fictícia e natural que constitui os comediantes : ---- A substituição das taxas de câmbio fixas (eu disse) por um ‘’regime de taxas flutuantes em 1973 coincide com o ocaso do estilo de crescimento predominante durante o pós-guerra . As convenções desse longo período de crescimento (taxas elevadas do crescimento do investimento privado , alto volume de gastos públicos , de produtividade e de salários reais ; e pleno-emprego ) foram minados pela concorrência mundial e  o conflito distributivo. A reconstrução européia revitalizara industrialmente a Alemanha e a França e o capital internacional japonês avançava ; logo depois , surgiram os Tigres asiáticos . Esses países sustentaram políticas de forte estímulo à acumulação interna de capital , apoiadas em estratégias mercantilistas de comércio exterior . No caso dos Estados Unidos, os primeiros sinais de desequilíbrio fiscal foram acompanhados de uma deterioração da balança comercial. Para a maior parte dos analistas isso resultou da tentativa de combinar as funções de regulador global com avanço de Estado social e do Estado industrial-militar (.) -----, concluí . A intensificação da concorrência e a hostilidade ao intervencionismo do Estado , à politização das decisões econômicas , acabaram acarretando um forte declínio do investimento privado , que as políticas fiscais expansionistas não conseguiram contra-balançar . Hipérbole! desta memória triunfalmente não tens tido como erguer-te, hoje obscura história em livro de ferro vestido: pois instalo, pela ciência,o hino de almas espirituais na obra de minha paciência. Durante a noite eu não tinha dormido enquanto atravessava o vale do Columbia sentindo cada pensamento como uma criação completa e inconfundível  ----- ‘’as ações do Estado ‘’ (eu pensava) não são mais efetivas para estimular o ‘’espírito animal’’ do mercado ---- , a série (como escreveu Proust ) descrevia sua curva , submergindo no pardo oceano sem horizontes da análise e perdendo de vista a situação básica : que a próxima parada para escrever era só Butte , Montana , não restando mais qualquer deformação secreta no mármore (De Portland a Butte, escrito em Spokane) das palavras conjuntivas : ‘’por’’, ‘’em ‘’, ‘’onde’’ ; sentido vago de ligação no âmago da noite chuvosa : A Neve-Norte , o Oeste que o Mississipi faz ---- noite-chuvosa-estrada-torrencial ---- a convicção de que não é impossível dominar o mundo impregna esse diário (eu já mostrei como as personagens e as vozes mudam de aspecto quando muda o ponto de vista. E já agradecemos aos formalistas russos e à Bergson : ----- Foi Bergson quem nos auxiliou a aplicar em escala inaudita a metafísica implícita no simbolismo : o tempo como quarta dimensão . Isso vem do fato de a realidade ser antes de tudo consciência . Isto é : não é nada , se não tiver consciência de ser. A COR O TOM O ANDAMENTO DA NARRATIVA . Passeávamos nosso semblante nos encantos da cena adiante . O ônibus que saía à meia-noite ... ia para Dallas . Os eventos podiam ser considerados como infinitamente pequenos ou infinitamente grandes na escuridão do Vale do Columbia --- o rio sob a chuva ---- uma gigantesca e densa urdidura de complicadas relações de forças. A estrutura própria da consciência (eu pensava) é atirar-se para frente, é a isso que chamamos vontade , algo muito diferente de um desejo psicológico . Nada além das grandes árvores e a escuridão nas escarpas e as luzes do outro lado do rio (grande o suficiente para ter seu próprio cabo Horn ---- Vancouver Wash na margem ... a verdade independente do fluir do tempo, independente da sucessão incoerente e sempre mutável de nossas outras impressões ;  a noite encapuzada à margem de águas turbulentas , pedras, perenes símbolos extra-temporais ----- incidentes e personalidades , bem como paisagens ---- que haviam se sedimentado pela interação da consciência mutável do indivíduo com a contínua alteração do mundo.


K.M.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Fumegante rio Klamath .

Em filosofia , ''precisar'' de uma idéia é quase o mesmo que pressenti-la, e esse diário tornou-se já um exercício de pressentimentos espontâneos ---- e o grande segredo de Stendhal ... era escrever ''imediatamente '' . Eu ainda possuía realismo o bastante em mim para sentir prazer com a resistência das coisas, mas especialmente para dar a tudo o que via um caráter absoluto incondicional , de ''fluxo de consciência '' . ----- A empresa global é a encarnação moderna da Mão Invisível de Adam Smith  (eu disse) Os instrumentos mais seguros para o progresso social não são as decisões políticas, mas as milhares de pequenas decisões a que chegam todos os dias os fabricantes , compradores e vendedores de combustíveis, automóveis , computadores, remédios , alimentos prontos, etc ---- o sadio desejo humano de possuir as coisas (pensava ironicamente ) , os distintivos regimes monetários e estruturas financeiras afetando a morfologia dos ciclos ao interagirem entre si , amplificando ou amortecendo seus movimentos de repente. A capacidade de inovação dos mercados ---- novos instrumentos de intermediação financeira e novos intermediários ---- tem sido responsável pela transformação dos regimes monetários . Isto porque as inovações financeiras buscam não só reduzir os riscos de flutuação de preços de ativos , mas também contornar  as restrições de liquidez ou de pagamentos impostos pelas normas  de criação e de ''destruição'' da moeda. As flutuações mais frequentes e mais amplas da taxa de juros e de câmbio , no âmbito dos processos de desregulamentação e abertura dos mercados, estimulou a criação de instrumentos destinados a repartir cada vez mais os riscos de preços , de liquidez e de pagamento . A criatividade do Mercado se concentrou mais por necessidade na tentativa de reduzir os riscos de variações abruptas dos preços dos papéis e, portanto , de minimizar as perdas de rendimento ou capital . Os derivativos por exemplo são instrumentos de repartição de riscos.  Sua existência sob forma padronizada, em mercados específicos, amplia as possibilidades de hedge dos agentes . Instrumentos que repartem , mas não eliminam os riscos , e provavelmente aumentam o risco sistêmico (.) ----, concluí . No entanto (pensava) não era bom que o homem moderno se conhecesse tão depressa, ou que se ocupasse demais consigo mesmo como motivo de lucro. O globalismo era a magia negra agressiva do mercado financeiro considerado como mais justo regulador possível dos assuntos humanos .  Subsídios, representação diplomática agressiva em apoio das operações externas de empresas globais sediadas nos Estados Unidos e programas de seguro do governo, tudo isso tinha sido considerado benção para a Mão Invisível no passado recente da América ----- embora o empresariado transnacional reaja mal ao controle sobre exportação de capitais . ----- Isso não funciona aqui, nem em lugar nenhum (!) -----, o anti-nacionalismo da empresa global era um dilema para sua ''justificação estratégica '' mais simples perante o governo : a rápida transformação das práticas de intermediação financeira , os métodos de avaliação de ativos e dos riscos associados , bem como a alteração silenciosa da hierarquia e do papel das instituições que atuam nos mercados , cujas consequências sobre a estabilidade do sistema globalizado são difíceis de precisar . ---- O mundo está presente em minha vida, a todo instante, em sua totalidade (.) Somos totalmente responsáveis por nossas vidas. Nada pode nos atingir que não seja assumido por nossas responsabilidades . O valor metafísico daquele que assume sua vida e sua autenticidade é o único absoluto (.) A frase pode até ser pesada e embaraçada, como se quisesse morder as coisas , mas está descrevendo a máquina do absoluto em funcionamento (.) -----, eu disse. O ruído absorvendo-se no sussurro do vapor que, escapando pelas placas de prata, envolve tudo numa nuvem esbranquiçada de não-pensamentos , enquanto o relógio em frente badala sem parar . Aquele ruído ''absorvia-se '' enquanto o ar tremia em minhas narinas , aspirando o ardente e abstrato nada do pranayama . Depois, uma pequena vibração subindo pelos flancos do barco se comunicando à ponte sobre o rio Klamath . Uma caminhada no ar tocado da tarde. Crianças debruçadas sobre a ponte olhando as águas. Fumegante rio Klamath , distantes Sierras Nevadas da Califórnia (Norte ) e Klamath Falls ; lá em cima , perto do lago Klamath, oeste das montanhas cobertas que levam às crateras do leste do Oregon ---- aridez , espaços abertos e a junção misteriosamente desconhecida de Oregon, Idaho e Nevada ( a leste de McDermitt ) .

K.M.

O fantasmagórico monte Shasta à distância..

De San Francisco a Portland (1.123 quilômetros) ; noite em Richmond  , Califórnia, jogado numa cadeira, buscando justificar a obra de arte para assim salvar os longos fios do tempo um a um . Eu tinha vivido tão bem ''de qualquer modo'' que fiz recuar o verossímil otimismo pequeno burguês ---- entrei num mundo mais escuro, mas menos insípido . Foi justamente quando minha paixão por ela flambou minhas impurezas diárias , mas só comecei a duvidar da ''salvação'' pela arte quando subi pelo lago Shasta passando por Buckhorn e as montanhas Hatchet , uma passagem espetacular do Nordeste, com muitas árvores e neves . A arte me parecia bem vã ao lado da pureza cruel do mundo natural , da natureza perfeita e cruel . O fantasmagórico monte Shasta à distância... lagos nas montanhas ; o céu azul altaneiros dos ares de montanha.  Lamoine... barrancos ao lado da ferrovia; espaços abertos ; florestas e montanhas até Dunsmuir ---- cidadezinha madeireira com estação ferroviária nas montanhas (Shasta nas nuvens da encosta, no vagar dos fantasmas na neve ) Como os espectros ali se exibem em pleno dia azul , lá em cima ... O grande albergue diante de espaços vazios ao norte e dos trens cargueiros cheios de carvão. Hóspedes nos hotéis. Pinheiros das montanhas. Sentia que não podia decifrar o sentido completo daquilo a não ser me colocando no futuro e esboçando com os olhos um futuro aparentemente vago e ininteligível ---- mas um futuro que (apesar de tudo ) enchia de significado  todo meu presente. Toda aquela ''vida''  naturalmente era projetada ante meus olhos de um modo ''não -temático '' e era objeto daquilo que Heidegger chamava de ''compreensão pré-ontológica'' . A maior parte do tempo o que via mesmo era a energia psíquica em estado puro .

K.M.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Quelle intervention eût pu nous contraindre ??


Nous regardions couler devant nous l ´eau grandissante . Elle effaçait d´un coup la montagne , se chassant de ses flancs maternels. Ce n ´était pas un torrent qui s ´offrait à son destin mais une bête ineffable dont nous devenions la parole et la substance . Elle nous tenait amoureux l ´arc tout-puissant de son imagination . Quelle intervention eût pu nous contraindre ?? La modicité quotidienne avait fui . Adoptés par l ´ouvert , poncés jusqu´à l ´invisible , nous étions une victoire qui ne prendrait jamais fin .

René Char .

A Mão Invisível do Mercado, de Adam Smith.



No livro Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith examina a natureza humana individual . A obra se dedica às duas questões centrais da ética : O que é a virtude ??  e Por qual meio se dá que uma mente prefira uma norma de conduta a outra ?? Para sintetizar a longa e por vezes tortuosa argumentação de Smith : dentro de cada indivíduo há um ''homem interior '' , que age como ''espectador imparcial '' de todas as suas ações. É-nos possível ignorar sua condenação (ou aprovação ) de nossas ações . Podemos resistir à sua censura, mas não podemos evitar ouvir sua voz.  A teoria de Adam Smith explica a voz da consciência, o sentimento interior espontâneo de culpa que experimentamos quando fazemos algo que, ao mesmo tempo , sabemos que desaprovamos . Isso explica o caráter contraditório de nossa natureza, quando parece haver dois elementos distintos lutando dentro de nós. Smith mostrou como podemos ser esmagados pelo remorso, mesmo quando nenhum agente externo nos condena. O quadro que Smith traçou do ''homem interior '' é não só engenhoso como estranhamente presciente. Não é difícil ver aqui o fantasma do Super-ego de Freud , com sua contenção socializante de nossos instintos, que ainda demoraria uma século para ser formulado. Embora não fosse uma obra de economia, é em Teoria dos Sentimentos Morais que Adam Smith introduz a idéia que lhe assegurou a imortalidade intelectual e econômica. Vale a pena citar a passagem extensamente:

''... o proprietário de terras orgulhoso e insensível vê seus extensos campos e, em um pensamento para as necessidades de seus irmãos, consome na imaginação toda a colheita que cresce à custa deles .... A capacidade de seu estômago não tem proporção alguma com a imensidão de seus desejos, e não receberá mais do que o do mais humilde camponês. O resto ele é obrigado a distribuir entre aqueles que preparam , da maneira mais saborosa, aquele pouco de que ele próprio faz uso .. Os ricos apenas escolhem do monte o que é mais precioso e agradável . Eles consomem pouco mais que os pobres, e apesar de seu egoísmo e rapacidade natural , embora pensem em sua própria conveniência, embora o único fim que propõem a partir da labuta de todos os milharesque empregam seja  a gratificação de seus próprios desejos vãos e insaciáveis , dividem com seus pobres o produto de todos os seus melhoramentos. São conduzidos por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição em porções iguais  entre todos os habitantes e assim, sem o perceber , sem o saber , promovem o interesse da sociedade''


Adam Smith


A economia é uma situação ''ganhar-ganhar''

A economia é uma situação ''ganhar-ganhar'' . Interferir nisso é sempre arriscado . Milton Friedman cita o juiz Louis Brandeis para defender a idéia : ''Os maiores perigos para a liberdade se emboscam na intromissão de homens zelosos, bem-intencionados, mas sem compreensão'' . Esta afirmação foi feita exatamente em 1928 e o juiz com certeza teria voltado atrás nos anos que se seguiram à Grande Depressão . Pouco antes da Quebra de Wall Street em 1929 o Federal Reserve havia refreado a oferta de dinheiro mantendo as taxas de juros altas, porque temia que a especulação no mercado de valores escapasse do controle . No período posterior à Quebra, contudo , deixaram as taxas de juros altas. E isso manteve a oferta de dinheiro baixa, os gastos afundaram depressa e a Depressão golpeou forte a economia. Nas palavras de Friedman : ''A Grande Contração (da oferta de dinheiro ) é um testemunho trágico do poder da política monetária ... não prova de insuficiência, como Keynes acreditou . A situação só se agravou quando as pessoas que precisavam de dinheiro tentaram retirar fundos de suas contas de poupança . A disponibilidade mínima de dinheiro significou que os bancos logo começaram a abrir falência num ritmo alarmante , e a Depressão golpeou mais forte ainda.  A expansão da oferta de dinheiro infla a economia. (Mais dinheiro : mais gasto , empresariado investindo em expansão ,etc ) De maneira semelhante, a restrição da oferta de dinheiro combate a inflação . (menos dinheiro : menos gastos, preços mais baixos etc ) Isso é feito por meio de política monetária, em que o banco central controla as taxas de juros e a oferta interna de dinheiro. Contrariando frontalmente a abordagem keynesiana , Friedman favorece a política monetária em relação à política fiscal , em que o governa teta controlar a economia por meio da tributação e do gasto público. A política monetária provou-se extremamente eficazno manejo da inflação . Abaixar ou aumentar as taxas de juros tornam o dinheiro mais ou menos disponível. Friedman recomendou ao banco central aumentar a oferta de dinheiro (dinheiro em circulação ) em 3 a 5% a cada ano , acompanhando assim a taxa normal de crescimento da economia dos Estados Unidos. Isso permitiria que o gasto aumentasse sem alimentar a inflação . enquanto isso, sua política de taxas de câmbio flexíveis  permitiria que a epidemia da inflação fosse contida no cenário internacional . Com taxas de câmbio fixas os países simplesmente exportavam inflação. Quando os preços no mercado interno subiam , compravam-se bens estrangeiros mais baratos. Isso levava a um gasto crescente e a uma elevação dos preços em outras economias, provocando inflação ali também . Com taxas de câmbio flexíveis , quando os preços subiam internamente o valor da moeda caía . Assim , não era mais barato comprar bens estrangeiros, a inflação não seria exportada e a indústria local se recuperaria. Mas a subjugação da inflação tinha seu preço ----- especialmente na forma de crescimento lento e desemprego . Friedman identificou uma ''taxa natural de desemprego '' , acima da qual a inflação começaria a subir . Como ele próprio admitiu em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de economia , essa taxa natural não era uma  ''constante numérica '' . Podia elevar-se a pique . No entanto, todas as tentativas para reduzir o desemprego abaixo dessa taxa , por mais bem intencionadas que fossem, seriam inúteis. Esse tipo de ação resultaria simplesmente num alívio temporário . O maior nível de emprego ocasionaria maiores preços, que resultaria em menor gasto e portanto em menor produção . Com isso a inflação retornaria , e provocaria inevitável aumento do desemprego , levando-o de volta à taxa natural e provavelmente a uma mais elevada. Mais uma vez, isso foi visto como economia em detrimento do povo . Altas taxas naturais de desemprego encobriam uma realidade de privação social disseminada . Inflação baixa, um crescimento lento mas com uma economia em funcionamento e desemprego em massa. As pessoas votam num governo para ele ''agir ''. Mas segundo Friedman, o próprio mercado realizava a única ação eficaz. Era como se nada nunca tivesse acontecido desde que a mão invisível de Adam Smith operara seu milagre (em relação ao qual até ele tinha seus temores ) . Friedman aferrou-se às suas idéias. Seu liberalismo era o liberalismo clássico que Smith também abraçara . As divergências em matéria de política econômica entre cidadãos imparciais provém sobretudo de previsões diferentes sobre as consequências econômicas da tomada de medidas... e não de diferenças fundamentais em matéria de valores básicos. Isso só se aplica aos ovinhos de delírio acadêmico ; na  pequena ilha de Manhattan isso é sentido de forma muito diferente. Cobiça e necessidade não resultam em valores básicos compartilhados.

K.M.

As peças para televisão de Samuel Beckett ;



As peças para televisão de Samuel Beckett: meios de produção, gêneros literários e teoria crítica.

Samuel Beckett's television plays: means of production, literary genres, critical theory.

Luciano Gatti

A historicidade de gêneros artísticos é o fio condutor das reflexões de Adorno sobre Fim de partida e O Inominável, de Samuel Beckett. No longo ensaio sobre Fim de partida, escrito entre 1960 e 1961, e publicado no segundo volume das Notas de literatura, Adorno, assim como em outros âmbitos de sua reflexão estética, examina o teatro beckettiano do ponto de vista do desenvolvimento autônomo dos materiais artísticos em sua história2. Nesse caso particular, trata-se de um exame detido do vir a ser do drama europeu e de seus pressupostos consolidados na configuração do drama burguês, a saber, entre outros, a afirmação da individualidade pelo exercício da liberdade no conflito intersubjetivo. Daí decorrem os elementos constituintes do drama, da centralidade do diálogo, passando pela concentração temporal, à resolução do conflito ao fim da curva dramática. Tais pressupostos, vinculados aos conceitos de indivíduo e de liberdade surgidos da sociedade burguesa, são então examinados à luz da conversão do capitalismo liberal em capitalismo administrado, a qual resulta em ampla transformação da relação entre sociedade e indivíduo, nitidamente desfavorável a esse último3. A partir da confluência de crítica da sociedade e crítica das formas artísticas, Adorno diagnostica uma profunda crise do drama. É o que ele descobre no emprego feito por Beckett das três unidades dramáticas, do diálogo e da reversão da curva dramática - um elemento formal do drama clássico - no tema da impossibilidade/necessidade de terminar. Todos os elementos do drama estão presentes, mas privados de sua função originária. Fim de partida é vista então como uma paródia do drama, ou seja, como um emprego da forma dramática na época de sua impossibilidade. Não custa lembrar que essa configuração aparece aos olhos de Adorno como uma resposta muito mais consequente - e também mais crítica - aos desafios do teatro moderno do que o teatro épico de Bertolt Brecht4. Também encontramos aqui uma sólida discussão a respeito do fim ou da impossibilidade do drama, a qual recebeu menos atenção que outras teorias da crise do drama, como a de Peter Szondi (Teoria do drama moderno) ou, mais recentemente, a de Hans-Thies Lehmann (Teatro pós-dramático)5.

Logo após a conclusão do ensaio, Adorno leu O Inominável e, entusiasmado, pretendia escrever um ensaio sobre o romance de Beckett, o qual não chegou a realizar. Restaram anotações preparatórias e reflexões incorporadas à Teoria Estética e ao ensaio sobre "Engagement", onde se lê o elogio irrestrito: "o romance verdadeiramente terrível O Inominável exerce um efeito em face do qual as obras oficialmente engajadas parecem brincadeiras de criança"6. Adorno considerava que o romance conseguia ir ainda além de Fim de partida e, em suas anotações, aborda diversos temas que retomam suas considerações anteriores, como a crítica à filosofia residual do cartesianismo e o tema do declínio do sujeito, discutindo ainda temas próprios à forma do romance, entre eles, a questão do tempo no romance posterior a Flaubert, a relação com o naturalismo, bem como o destino da forma do romance após Proust e Kafka. Do conjunto das anotações uma questão particular parece iluminar de maneira especial o modo como Adorno indica em O Inominável uma certa tendência inscrita na história do romance europeu, a qual aponta para a "indiferenciação de narração e teoria"7. A colocação toca de maneira polêmica em considerações da mesma época a respeito da relação entre arte e filosofia. Ela, contudo, não deve ser interpretada no sentido da indistinção entre ambas, mas em função de uma tendência do romance moderno a incorporar a reflexão a respeito do processo narrativo e contestar a pretensa autonomia do universo ficcional visada pelo realismo burguês. Nesse sentido, O Inominável apresentaria a "consumação da tendência em direção ao romance reflexivo"8. Do mesmo modo que Fim de partida, O Inominável é interpretado como um termo final de um processo de transformação dos gêneros à luz dos desenvolvimentos da história recente9.

No cenário da teoria do teatro contemporâneo, a interpretação adorniana deu margem a reafirmações da autonomia do drama - ou de seus vestígios - num cenário pós-vanguardista, o qual encenaria, justamente, o fracasso da passagem vanguardista entre estética e práxis social. É o que encontramos em trabalhos como a teoria da tragédia de Christoph Menke, que se apega fortemente à clássica autonomia da experiência estética10. Segundo sua interpretação de Fim de partida, Beckett encena a tragédia da passagem entre o jogo teatral e a práxis política11. Essa interpretação é elaborada no contexto de uma polêmica contra um dos componentes centrais da concepção de teatro pós-dramático, a saber, a pretensão de extravasamento do teatro para a vida. Menke procuraria conferir nitidez aos limites entre arte e realidade, explicitando a autonomia do drama a partir de um duplo olhar, atento tanto ao conflito dramático quanto ao seu caráter de jogo dramático. O drama adquiriria consciência de sua teatralidade12,propiciando ao espectador a visão irônica e distanciada, capaz de reconhecer, nos momentos de cesura do ilusionismo cênico (tanto Hölderlin quanto Brecht e Benjamin são recuperados aqui), a encenação do fracasso das passagens entre a seriedade da práxis e a beleza do jogo como a própria suspensão do domínio do estético.

No polo oposto, com ampla influência no panorama atual, temos a apologia da situação teatral, tal como defendida pela teoria do teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehmann13. A partir de inúmeros espetáculos que, desde os anos 1960, aproximam o teatro de outras artes como a performance, o happening, as artes visuais e a video-arte, seu autor reúne argumentos para situar o drama em um estágio histórico superado. Para tanto, ele toma como referência uma noção circunscrita de drama, marcada pela centralidade do conflito intersubjetivo estilizado no diálogo - a colisão dramática - e do texto na economia do espetáculo. A importância de mudanças significativas da forma dramática ao longo do século XX fica naturalmente em segundo plano, sejam elas a introdução de elementos épicos no drama (e não só pelo teatro brechtiano), a variedade de tradições teóricas pensando o espetáculo teatral, ou mesmo os traços épicos dos próprios espetáculos que alimentam sua teoria do pós-dramático. No limite, tal teoria busca despedir-se de conceitos como mímesis e representação para afirmar um teatro do real que torna realidade e representação termos indistinguíveis14.

Em um debate com Menke, Lehmann sustentou que a autorreflexão do drama deixaria intocada a situação teatral, cristalizada nos domínios bem demarcados entre o espectador na plateia e a representação de uma ação ficcional no palco. Sua objeção não se restringe apenas a ressaltar que o atual imperativo generalizado de fragmentação estética neutralizou muito o potencial desestabilizador da interrupção, a qual pode ser introduzida sem maiores dificuldades num espetáculo convencional. O ponto central de seu argumento está na maior interpenetração entre os domínios do estético e da vida prática. Nesse sentido, o teatro não pode se contentar em oferecer uma reflexão que desestabiliza a posição serena e irônica do espectador. Este deve chocar-se com a realidade, diz Lehmann, confundindo o que são jogo, seriedade, responsabilidade, inocência, práxis real e jogo estético, sem, contudo, perder a consciência de que tal diferenciação é irrenunciável. Contra a autonomia rigorosa defendida por Menke, Lehmann propõe que o teatro pode ser mais que a tematização da tensão entre práxis e encenação (Spiel): ele é uma forma de práxis real-corporal que mantém o duplo caráter de processo de vida real (práxis) e ficção estética (jogo) em cada um de seus elementos, salientando que não há limite rígido entre os domínios estético e extra-estético15.

O trabalho de Beckett como diretor de suas peças, em particular o trabalho de direção de Fim de partida realizado no Schiller Theater de Berlim, em 1967, poderia evidenciar que a polarização entre a autonomia do drama e a apologia da situação teatral impede a devida a compreensão de peças como essa16. Embora o trabalho de direção de Beckett se aproxime da valorização contemporânea do aqui e agora da situação teatral, a teoria do pós-dramático não seria suficiente para dimensionar a conexão entre os gêneros épico e dramático configurada por Beckett na peça (e também em muitas produções teatrais contemporâneas). Por outro lado, a consideração da autonomia do drama não permitiria ver o quanto tal conexão entre épico e dramático depende de seu aspecto teatral, ou seja, dos elementos técnicos mobilizados para construir a materialidade da cena.

Esses elementos seriam suficientes para justificar uma perspectiva de interpretação da obra tardia de Beckett que leve em conta a ruptura decisiva com as convenções dos gêneros literários e artísticos, sem, contudo, recair na alternativa entre a reafirmação da autonomia da reflexividade do jogo teatral e superação do drama por um teatro pós-dramático. Embora as obras tardias dificilmente possam ser entendidas segundo os conceitos de drama, drama épico, tragédia, romance ou novela, elas também resistem à dissolução formal que ronda a teoria do pós-dramático. Ao contrário, um dos desafios de compreensão colocados por elas é coordenar a ruptura com parâmetros artísticos tradicionais e o alcance de um sentido rigoroso de forma artística.

Nesse contexto, as peças para televisão assumem um papel estratégico para o exame da obra tardia de Beckett, pois o novo meio artístico (a televisão), apesar da proximidade maior com o gênero teatral, permite a visualização privilegiada da relação estabelecida por ele entre elementos particulares extraídos da tradição dos gêneros literários e das artes de modo geral. Além disso, elas propiciam a discussão dos problemas herdados da prosa e do teatro a partir da configuração de um novo meio de produção artístico, o qual foi desenvolvido por Beckett ao longo de duas décadas de colaboração com o Süddeutscher Rundfunk (SDR). Trata-se, em suma, de compreender essas peças no contexto do projeto poético da obra tardia, o qual remonta à conhecida "Carta alemã", de 1937, um dos raros textos em que Beckett toma a palavra para referir-se ao próprio trabalho.

    Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês oficial. E, mais e mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. Gramática e Estilo. Para mim, eles parecem ter se tornado tão irrelevantes quanto o traje de banho vitoriano ou a imperturbabilidade do verdadeiro cavalheiro. Uma máscara. Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por trás - seja isto alguma coisa ou nada - comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje.17

O texto tem em vista um desafio para o trabalho em prosa, o qual se desdobrará a partir dos anos 1950 nos diversos meios artísticos trabalhados por Beckett: teatro, rádio, cinema e televisão. De modo geral, tal poética resulta em obras marcadas pela eliminação das referências históricas e geográficas evidentes, pela sondagem de vazios, falhas e silêncios no emprego da linguagem, pelo tratamento dos meios artísticos como material bruto, em detrimento de suas conotações expressivas. São obras marcadas por singular dialética entre meios artísticos e a posição do sujeito, seja como artista, seja como personagem: o controle rigoroso de procedimentos artísticos, a redução formal e a regulação do tempo por circularidades e reiterações presta-se à exposição dos mecanismos diversos de controle do sujeito. O máximo controle torna-se indissociável do descentramento agudo do sujeito. Nas peças para televisão, esse projeto artístico ganha concretude por meio da exploração exaustiva de três elementos formais que serão suscintamente evocados a seguir: as séries, as vozes e as imagens.

Séries: Quadrat I + II

A utilização de séries, sob a forma de repetições, paralelismos, variações e combinatórias, está presente desde os primeiros textos em prosa como Murphy e ganha destaque a partir de Watt e da trilogia do pós-guerra (Molloy, Malone morre e O Inominável). Em Murphy, o episódio dos biscoitos no Hyde Park antecipa aquele das pedras de Molloy, em que o protagonista desenvolve um longo e complexo raciocínio serial com o intuito de chupar cada uma das quatro pedras contida em cada um de seus quatro bolsos. Ainda em Murphy, a ronda noturna no hospital, entremeada pelo jogo de xadrez com Mr. Endon, cujas movimentações sobre o tabuleiro são minuciosamente listadas, sinaliza o que viria a ser trabalhado de modo exaustivo em Watt, romance escrito durante a II Guerra, em que as trajetórias de Watt e Mr. Knott em nada lembram as motivações ou caracterizações psicológicas do realismo formal, as quais ainda eram objeto de paródia em Murphy. Ao contrário, elas se desenvolvem inteiramente segundo combinatórias e variações de poucos elementos. Elas se prestam à exploração da falha reiterada na constituição desses anti-heróis e, a partir da trilogia, com a adoção da voz narrativa em primeira pessoa, afetam de modo mais contundente a instauração do narrador romanesco.

No teatro, a ênfase na repetição contra a resolução da ação dramática nas primeiras peças pode ser compreendida da mesma perspectiva. Em Esperando Godot, o presente dramático é esvaziado por meio da repetição, em dois atos simétricos, dos mesmos episódios banais que não promovem o encaminhamento da ação em direção a um desfecho. Em Fim de partida, peça em um ato, Beckett alça a repetição à posição de tema da peça, explicitamente discutido pelos personagens, ao fazer da impossibilidade de terminar (inclusive de terminar a própria peça) o meio de exposição de um cotidiano destinado à repetição infinita. Especialmente no teatro, tais dispositivos permitiram a Beckett acolher em obras altamente racionalizadas elementos da tradição popular dos clowns e do teatro de variedades, conferindo a eles um acento próprio, uma certa tragicidade de personagens que erram e falham, mas não aprendem com as falhas, voltando a repeti-las incessantemente.

Na obra tardia, as peças para televisão Quadrat I + II dedicam-se à exploração exaustiva desse procedimento em um trabalho fortemente coreográfico, sem recurso a textos literários. Trata-se de duas peças simétricas para quatro instrumentos percussivos e quatro atores que percorrem uma série de caminhos rigorosamente traçados em um cenário quadrangular. Os quatro cantos da TV em tubo desdobram-se em quatro figuras, quatro cores (as três cores primárias e o branco), quatro pontos de entrada e saída do cenário. Eles entram e saem alternadamente de cena, compondo séries que atingem seu ponto máximo de tensão nos momentos em que os quatro atores estão presentes, desviando-se simultaneamente do ponto central do quadrado. As séries compõem uma coreografia que só se mostra inteiramente no momento em que as quatro figuras estão em cena, revelando que o movimento de cada um é determinado ou controlado pelo movimento de todos, mesmo quando está só em cena. A repetição ou a combinatória de séries é a responsável pelos dois aspectos formais determinantes da coreografia: o controle extremo do tempo e do movimento, que impede o choque entre as figuras, e a falta de finalidade ou de sentido dos movimentos, os quais devem repetir-se infinitamente, sem resolução, como um jogo sem propósito pré-determinado.

Seria possível sustentar que Beckett transpõe para o meio televisivo uma interrogação a respeito dos procedimentos artísticos peculiares a cada gênero (épico e dramático), colocada primeiramente por seus trabalhos em prosa e para o teatro. E ele o faz por meio de um processo de redução e literalização extrema dos procedimentos formais característicos dos outros gêneros, o qual resulta da conscientização a respeito da historicidade dos materiais artísticos. A televisão, por sua vez, diferentemente do que ocorreu com a prosa e com o teatro, lhe permitiu realizar uma obra unicamente a partir da tematização do procedimento serial. Nesse sentido, Quadrat I + II seriam tanto uma reflexão a respeito da transformação dos demais gêneros por elementos serialistas quanto a constituição de um gênero próprio, possibilitado pelo meio de produção televisivo. Nesse mesmo contexto, ainda seria possível interrogar em que medida o emprego das séries permitiria aproximar Beckett de artistas que também se valem desses procedimentos, ou seja, de artistas comumente associados ao minimalismo norte-americano, tais como Sol LeWitt e Bruce Nauman, com os quais Beckett tem diversas afinidades. Pois se é inegável a importância de Beckett para o processo de literalização realizado por esses artistas com seus materiais artísticos, ainda caberia verificar se haveria uma repercussão do minimalismo na obra de Beckett, ou seja, um retorno da influência18.

Vozes: Eh Joe , Geistertrio

A obra em prosa de Beckett passa da terceira pessoa narrativa dos primeiros contos e romances (More pricks than kicks, Murphy, Watt) para a primeira nas Novelas e na trilogia do pós-guerra. Essa transformação lhe permite intensificar o processo de erosão das convenções do romance burguês e reforçar a instabilidade da voz narrativa. Em sua última trilogia, (Companhia, Mal visto mal dito, Para frente o pior!), a dificuldade de classificar a voz narrativa deu margem à denominação de "última voz narrativa". Em Mal visto mal dito, ela assume um tom marcadamente lírico, em que o "eu" se metamorfoseia em um "olho". Em Companhia, por sua vez, a voz se duplica em busca de um interlocutor e adquire o caráter dramático imprescindível à recordação (ou fabulação) de vestígios da experiência passada do narrador. É como se o monólogo se transformasse em diálogo ao intercalar vozes internas19. O caráter dramático e interrogativo da voz foi desenvolvido em algumas das curtas peças para teatro da fase final, os dramatículos (dramaticules), como Beckett as chamava. Em Passos e Rockaby, a atriz contracena com uma voz que não está no palco. Em ambas as peças, é notável a forte oposição entre a desmaterialização da voz e a materialidade da cena, a qual é enfatizada pela marcação dos passos em Passos e pelo movimento da cadeira em Rockaby. Nesse sentido, a voz pode ser entendida como duplicação da voz interior pela evocação de um interlocutor e como dispositivo teatral, na medida em que ela transmite comandos necessários à movimentação da atriz em cena ou à ativação da voz em off.

Nas peças para televisão Eh Joe e Geistertrio, a interpelação da personagem masculina pela voz em off feminina é coordenada com movimentos de câmera que se aproximam e se afastam de seu rosto. Em Eh Joe, enquanto a voz o confronta com recordações de eventos e de pessoas próximas, resistindo a ser calada por ele, a câmera estuda seu rosto, sem que ele tenha consciência de sua presença. Se Eh Joe é filmada em um único plano, Geistertrio apresenta cortes diversos de detalhes do espaço. Além disso, recorre a trechos do segundo movimento do trio para piano, violino e violoncelo op. 70, n. 1, de Beethoven, o qual dá nome à peça. Em comparação com Eh Joe, Geistertrio é formalmente mais ambiciosa no intuito de coordenar música, cena e voz. Esta última se destaca não só por evocar o passado, como em Eh Joe, mas também por organizador a materialidade da cena, na medida em que dá comandos de movimento ao ator. Caberia assim verificar como essa inscrição da voz na materialidade da cena, auxiliada pelos movimentos de câmera, reorganiza elementos anteriormente problematizados nos textos em prosa e nas peças teatrais, retomando em novo meio artístico um processo de construção e desestabilização de um sujeito narrativo e/ou dramático que ainda se apresenta a partir da evocação de vestígios de experiência.

Imagens: ...nur noch Gewölk..., Nacht und Träume, Was Wo

As peças teatrais tardias caracterizam-se pelo caráter fortemente pictórico da cena: sobre o palco, poucos elementos movem-se minimamente durante a apresentação. Em Passos, a atriz caminha lentamente de um lado a outro do palco, marcando com o ruído dos passos o diálogo com a voz. Rockaby traz ao palco apenas uma mulher sentada em uma cadeira de balanço, cujo movimento faz o rosto da atriz aparecer e desaparecer diante do foco de luz. São peças de teor fortemente imagético, um tableau construído com mínimos elementos - uma figura, um objeto - como já era o caso em algumas das peças anteriores: Krapp à mesa com o gravador em A última gravação de Krapp ou Winnie afundada numa pequena colina em Dias felizes. A preponderância de elementos imagéticos também marca a composição dos textos, seja nas peças, seja em textos em prosa como Companhia, em que a voz narrativa se configura pela evocação de imagens, por fazer aparecer e desaparecer vestígios do passado em uma espécie de lusco-fusco literário.

Peças para a televisão como ...nur noch Gewölk..., Nacht und Träume e Was Wo retomam essa consciência pictórica da construção da cena, a qual também é uma marca distintiva de Quadrat I + II e Geistertrio. Mas, diferentemente desses trabalhos, elas exploram os recursos do meio televisivo sobretudo para a construção de imagens evanescentes. Graças à sobreposição de planos e de técnicas de tratamento de imagem, estabelece-se um processo contínuo de aparecimento e desaparecimento de imagens, de imagens borradas que se assemelham a sombras de contornos indefinidos, como o rosto de mulher que declama em silêncio os versos de Yeats que dão o nome a ...nur noch Gewölk.... Esses recursos desenvolvem o papel da iluminação em Passos e Rockaby e também conferem ao procedimento imagético de Companhia uma materialidade inacessível aos trabalhos em prosa.

Assim como ocorre com as séries e as vozes, o tratamento das imagens segue um princípio de cruzamento de gêneros tradicionais, o qual vai além da referência paródica às convenções do drama e do romance. A estratégia, aqui esboçada, de abordar as peças para televisão por meio da identificação de traços de outros gêneros trabalhados por Beckett justifica-se por situar tais trabalhos no contexto maior da obra. Não se trata, contudo, de um mero esforço de localização. O que de fato importa é a compreensão da historicidade dos procedimentos artísticos e de suas configurações em cada obra. Por isso, a análise do tratamento dado por Beckett a outros gêneros e meios artísticos deve ser pensada como uma forma de compreender a novidade do uso beckettiano do meio televisivo. As questões sobre os gêneros, bem como a reflexão teórica acumulada a seu respeito, merecem ser desenvolvidas tanto pela sua necessidade como pela em sua insuficiência para a devida compreensão das peças para a televisão.

As considerações teóricas implicadas nas peças televisivas reorganizam-se assim em torno de duas questões centrais: a autonomia dos gêneros e o papel dos meios técnicos de produção artística. Em outras palavras, tais peças colocam a questão dos gêneros à luz da transformação técnica da obra de arte. Nesse contexto, reflexões oriundas da Teoria Crítica de Adorno e Benjamin tornam-se úteis para problematizar a relação entre os gêneros e o meio técnico de produção artística. Em um ensaio dos anos 1960, intitulado "A arte e as artes", Adorno nota que os limites entre os gêneros se tornam mais permeáveis em parte significativa da produção artística do pós-guerra, caracterizando uma situação que ele denomina de "Verfransung", de "imbricamento", dos meios artísticos20. Desenvolvimentos na pintura, como a de Mondrian, por exemplo, repercutem na formulação de técnicas musicais; a música, por sua vez, por meio da notação, se aproxima das artes gráficas; técnicas musicais como as do serialismo tornam-se princípio construtivo para a literatura; a pintura se descola da superfície da tela visando às três dimensões do espaço; e exemplos significativos da escultura se aproximam de construções de caráter arquitetônico. O ensaio de Adorno é receptivo a essas tendências, e busca compreendê-las a partir do desenvolvimento autônomo dos gêneros e das artes em particular, o que o leva a sustentar que os imbricamentos mais significativos seriam aqueles resultantes de um processo imanente a cada gênero artístico. Desse modo, o serialismo como princípio de construção literária é relevante na medida em que resulta da reflexão imanente ao próprio romance a respeito da centralidade do conteúdo narrado, enquanto que a conexão entre pintura e espaço é significativa como reflexão a respeito da relação entre a superfície e o ilusionismo propiciado pelas técnicas de perspectiva.

Tais considerações remetem à concepção adorniana da autonomia da obra de arte, defendida por ele desde os anos 1930 contra a posição de Benjamin a respeito do desenvolvimento tecnológico dos meios de produção artísticos. Naquela ocasião, tratava-se para Adorno de apontar que o fenômeno do "declínio da aura" era um processo imanente às obras de arte, progressivamente conscientes da historicidade de seus materiais, e não uma decorrência da invenção de novos meios técnicos como o cinema e a fotografia. Apesar das objeções de Adorno, a ênfase de Benjamin no meio de produção é de grande relevância no contexto que examinamos, pois permite vincular a questão da historicidade dos gêneros ao uso feito por Beckett do meio televisivo. Em seu ensaio de 1934, "O autor como produtor", Benjamin realça como determinadas inovações técnicas tornavam possível superar certas antinomias no âmbito da atividade artística21. Os gêneros e as formas, dizia ele, deveriam ser pensados em função de circunstâncias técnicas de produção. Entre os artistas mencionados por ele, a fotomontagem de John Heartfield derrubava a barreira entre escrita e imagem, e em A medida, a peça de aprendizagem (Lehrstück) de Bertolt Brecht e Hanns Eisler conectavam-se música de concerto e espetáculo teatral. Esses desenvolvimentos eram significativos para Benjamin na medida em que realçavam a historicidade dos gêneros literários e das formas artísticas tradicionais à luz das transformações técnicas recentes. Isso permitiria considerá-los não apenas da perspectiva do conceito de obra de arte, mas também do desenvolvimento de novos meios de produção artística. Por desenvolvimento técnico, entende-se aqui não apenas o desenvolvimento imanente ao material artístico, considerado em sua autonomia, mas também o papel de desenvolvimentos tecnológicos de outras artes nesse desenvolvimento. É o caso, por exemplo, de um espetáculo do teatro épico, em que a incorporação de técnicas de montagem, próprias ao cinema, ao rádio e à fotomontagem, atuava na reformulação do gênero dramático em direção ao épico.

Essa referência a Benjamin nos impele a considerar, além da autonomia própria aos gêneros, as condições de produção disponíveis a Beckett nos estúdios do Süddeutscher Rundfunk entre os anos 1960 e 1980, época em que a TV alemã era exclusivamente pública22. Pois tais peças também confrontam diversos aspectos das convenções da estética televisiva: os sombreamentos da imagem em preto e branco, o comentário da voz em off, a sobreposição de imagens pela edição, o enquadramento, os movimentos de câmera que aproximam e distanciam o objeto em foco, entre outros elementos que conferem ao meio seu caráter pretensamente realista ou documentarista. Não se trata assim de optar de antemão por uma ou outra formulação teórica, muito menos de extrair delas uma explicação para obras produzidas posteriormente, mas de buscar subsídios para uma abordagem das peças para televisão que leve em conta tanto a historicidade das formas quanto as circunstâncias de produção. A problematização teórica seria assim coordenada com a análise detida das obras de modo a decifrar mais esse enigma deixado pela obra tardia de Beckett, a saber, o desenvolvimento de um novo meio de produção artística.

Bibliografia complementar

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BECKETT, Samuel. The Grove Centenary Editions of Samuel Beckett: Novels I; Novels II; The Dramatic Works; The Poems, Short Fiction and Criticism. Nova York: Grove, 2006. [ Links ]

________. Quad et autres pièces pour la télevision suivi de L'Épuisé, par Gilles Deleuze. Paris: Les Éditions de Minuit, 1992. [ Links ]

BORGES, Gabriela. A poética televisual de Samuel Beckett. S.Paulo: Annablume/Fapesp, 2009. [ Links ]

BRATER, Enoch. The drama in the text: Beckett's late fiction. Oxford: Oxford University Press, 1994. [ Links ]

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CLEMENT, Bruno. L'oeuvre sans qualités: rhétorique de Samuel Beckett. Paris: Éditions du Seuil, 1994. [ Links ]

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1. Cf. BECKETT, Samuel. The complete dramatic works. London/Boston: Faber & Faber, 1990. As peças produzidas pela Süddeutscher Rundfunk, sob direção de Beckett, foram reunidas em um DVD lançado pela Suhrkamp: Samuel Beckett, He, Joe, Quadrat I und II, Nacht und Träume, Geister-Trio... Filme für den SDR. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2008. Como devemos trabalhar com essas produções da TV alemã, o título original será mencionado em alemão.

2. Cf. ADORNO, Theodor W. Versuch, das Endspiel zu verstehen. In: Noten zur Literatur. Gesammelte Schriften 11. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.

3. Além do ensaio sobre Beckett, diversos trabalhos de Adorno insistem nesse diagnóstico. Ver, entre outros, a "Dedicatória" às Minima moralia e "Capitalismo tardio ou sociedade industrial?". Para um exame do diagnóstico de época adorniano no pós-guerra, ver NOBRE, Marcos. A dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras, 1999.

4. Sobre sua posição perante o teatro brechtiano, ver "Engagement". In: Noten zur Literatur II; Ästhetische Theorie, p. 366-367; e também a Correspondência com Walter Benjamin como um todo, uma vez que nos debates com Benjamin ele já sustenta a autonomia da obra de arte contra o teatro pedagógico.

5. Discuti a interpretação de Fim de partida proposta por Adorno, em particular o primado que ele confere ao drama perante sua encenação, no artigo "Adorno e Beckett: aporias da autonomia do drama". In: Kriterion, v. 55/130, 2014.

6. ADORNO, Theodor W. "Engagement". In: Noten zur Literatur, op. cit., p. 426.

7. ADORNO, Theodor W. Skizze einer Interpretation des Namenlosen. In: Frankfurter Adorno Blätter, hrsg. München: Vom Theodor W. Adorno Archiv, edition text + kritik, 1992, p. 61.

8. Ibidem.

9. Sobre as anotações de Adorno a respeito de O Inominável, cf. WELLER, Shane. Adorno's notes on The Unnamable. In: Journal of Beckett Studies 19.2 (2010); e GATTI, Luciano. Sou feito de palavras: a(s) voz(es) narrativa(s) em O Inominável de Samuel Beckett. In: Viso - Cadernos de estética aplicada, v. IX, n. 17, jul.-dez., 2015.

10. Cf. MENKE, Christoph. Die Gegenwart der Tragödie. Versuch über Urteil und Spiel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.

11. Cf. Idem, Praxis und Spiel. Bemerkungen zur Dialektik eines postavantgardistischen Theater. In: PRIMAVESI, Patrick; SCHMITT, Olaf A. (hg.). Aufbrüche. Theaterarbeit zwischen Text und Situation. Berlin: Theater der Zeit, 2004, p. 33. "No teatro de vanguarda, a experiência do fracasso do jogo na práxis é exposta involuntariamente. (...) O que se mostra de modo involuntário no teatro, também pode tornar-se voluntário: o fracasso do jogo teatral na práxis pode tornar-se objeto e conteúdo do jogo teatral. Isto acontece, por exemplo, quando Clov encena as estratégias vanguardistas de subversão até o ponto de autoparalisação (...). Em tais formas 'pós-vanguardistas' de teatro, o fracasso das vanguardas históricas em mediar (de modo mais ou menos 'dialético') jogo e práxis não é pressuposto, mas se torna ele mesmo apresentado e encenado no teatro. Aqui se conquista no próprio teatro a consciência da diferença insuperável entre a práxis e o teatro".

12. O conceito de teatralidade é normalmente empregado para enfatizar tanto a autoconsciência do jogo teatral quanto sua independência do drama. Não é por acaso que o conceito ganhou relevo na teoria teatral com a progressiva conquista de autonomia do espetáculo perante o texto dramático. Não se trata, contudo, de definir a essência do espetáculo teatral, ontologizando a teatralidade como aquilo que identificaria o teatro perante as outras artes. O termo, assim como a experiência a qual ele remente, escapa à definição unívoca, devendo ser entendido muito mais como o esforço de circunscrever diversos processos de composição da situação teatral: presença física do ator, associação do espectador à produção do espetáculo, autonomia das artes na composição da cena, relações entre palco e plateia, entre mímesis e ilusão, entre performance e ficção etc.

13 . Ver LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

14. Ver as diferentes avaliações da teoria de Lehmann no volume organizado por Jacó Guinsburg e Silvia Fernandes, especialmente o ensaio da própria organizadora e o de Luiz Fernando Ramos. O pós-dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2010.

15. Cf. LEHMANN, Hans-Thies. Tragödie und Postdramatisches Theater. In: MENKE, Bettine; MENKE, Christoph. Theater, Trauerspiel, Spektakel. Berlin: Theater der Zeit, 2007, p. 221-224. Ver também LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático, op. cit., p. 173. A exposição mais abrangente deste "teatro do real" encontra-se nas p. 175-176.

16. Cf. GATTI, Luciano. Choreography of disobedience: Beckett's Endgame. In: Journal of Beckett Studies 23.2 (2014).

17. BECKETT, Samuel. "Carta Alemã". In: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 169.

18. O ensaio de Rosalind Krauss sobre Sol LeWitt permanece uma referência incontornável para essa discussão. Ela afirma: "The aesthetic manipulations of an absurdist nominalism are hardly new with LeWitt. They appear everywhere throughout the production of Minimalism, beginning in the very early '60s, and are of course to be found in the literature most venerated by that group of sculptors and painters: the literature of the nouveau roman and of Samuel Beckett. To speak of what LeWitt shares expressively with his generation is not to diminish his art; rather it is to help locate the real territory of its meaning. (...) And the passage from Molloy about the sucking stones is one of many possible instances from Beckett in which the gears of ratiocination proceed to spin in an extraordinary performance of "thinking," where it is clear that the object of this "thought" is entirely contained within the brilliance of the routine. It is like music-hall performers doing a spectacular turn, switching hats from one head to the other at lightning speed. No one thinks of the hat as an idea: it is simply a pretext for a display of skill - as is the "problem" of the stones. It is the ironical presence of the false "problem" that gives to this outburst of skill its special emotional tenor, its sense of its own absolute detachment from a world of purpose and necessity, its sense of being suspended before the immense spectacle of the irrational. For LeWitt's generation a false and pious rationality was seen uniformly as the enemy of art. (...) For this generation the mode of expression became the deadpan, the fixed stare, the uninflected repetitious speech". KRAUSS, Rosalind E. LeWitt in Progress. In: The originality of the avant-garde and other modernist mythos. Cambridge/London: The MIT Press, 1986, p. 256-258. Sobre Beckett e Bruce Nauman, ver BENETTI, Liliane. Ângulos de uma caminhada lenta: exercícios de contenção, reiteração e saturação na obra de Bruce Nauman. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA/USP. São Paulo, 2013. Ver também o catálogo da exposição "Nauman/Beckett", Kunsthalle Wien, 2000.

19. Esse mecanismo foi bem analisado em CLÉMENT, Bruno. La voix verticale. Essai sur la prosopopée, Paris: Belin, 2013.

20. ADORNO, Theodor W. Die Kunst und die Künste. In: GS 10.1, p. 432-453.

21. Benjamin, Walter. Der autor als Produzent. In: Gesammelte Schriften 2.2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 683-701.

22. Sobre as condições de produção no Süddeutscher Rundfunk, ver BIGNELL, Jonathan. Beckett on screen. The television plays. Manchester: Manchester University Press, 2009, e HARTEL, Gaby e GLASMEIER, Michael (eds.). The eye of prey. Becketts Film-, Fernseh- und Videoarbeiten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011. Samuel Beckett em cenário de Quad 1 + 2.

Recebido: 16 de Maio de 2016; Aceito: 18 de Maio de 2016

L

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

CIÊNCIA

Eu pagava diariamente o preço de uma existência aproveitada para iniciar uma obra inconcebível e atormentante e desfrutar refinados prazeres da mente, os quais aprendia a gozar com volúpia embriagadora . A todo momento pensava que era hora de recomeçar a trabalhar naquela work in progress simbolista interminável . De fato, minha vida assumira de repente, aos meus olhos, um valor bem maior, pois eu supunha nela tudo o que parecia que ela poderia me oferecer , e não o pouco  a que eu tinha reduzido com o poder da mente ---- mas num instante minha vida enchera-se de labores mentais , viagens astrais, sonhos lúcidos , vampirismo tântrico, excursões ao abismo psíquico, preciosas cartografias internas, todas a perigosas belezas dos duelos mentais. No rascunho de uma descrição fenomenológica eu escrevi : ''Para maior parte dos filósofos o Ego é um ''habitante'' da consciência . Alguns afirmam sua presença formal no seio das ''Erlebnisse'' , como um princípio vazio de unificação. Outros ---- psicólogos em sua maior parte ---- pensam descobrir sua presença material, como centro dos desejos e dos atos em cada momento de nossa vida psíquica ''. Eu queria com isso mostrar que o Ego não estava nem formalmente nem materialmente ''na'' consciência ; estava do lado de fora , no mundo ; que o Ego era uma instalação forânea , uma influência, uma tensão que incidia no diálogo interno , como um ser vindo do mundo ... na verdade , eu tinha poucos ''conflitos íntimos'' como administrador global ---- o meu não era (definitivamente) o estereótipo do executivo torturado de nível médio da literatura clínica e novelas moralistas da tv ; eu abrira caminho até a suíte executiva ajustando meu caráter às finalidades da empresa, como fizeram os melhores de nós ; vivendo a vida do potentado inteiramente dedicado ao trabalho . Os que não haviam chegado ao cume (como eu pensava) ficaram pelo caminho por demonstrarem sinais de demasiado humanismo para exercer o poder com a necessária inexorabilidade;  ou mesmo sinais de sadismo e psicopatia para exercê-lo com a devida ''finesse'' . As empresas devoravam os homens, mas esse não era meu assunto preferido: a gestão das fortunas ,  as perdas , as linhas de financiamento na sombra , fora dos balanços os bancos ; e um monte de sacrifícios pessoais por razões puramente carreirísticas . A lealdade à companhia aumentava o senso de insignificância pessoal do Presidente . O admnistrador planetário terminava invariavelmente a vida como um distinto e penteado velho grisalho nos cadernos de economia, pouquíssimo expressivos fisionomicamente, considerando a si mesmos até o fim peças de pouco  valor em comparação com  as empresas que os tinham promovido ; seres violentamente arremessados através do espelho sadio da vida privada à vida dos espectros publicitários que dirigiam o mundo exterior , a imaginação pulsional-publicitária daquela rica e vivida cena social que descrevia no DIÁRIO : dramatizados por uma imaginação mil vezes mais poderosa, a dependência da vida pessoal em relação à empresa era levada por mim ao cúmulo como requisito obrigatório para ser promovido à administrador .O alto -administrador , o patrão-planetário , devia obrigatoriamente possuir também os dons da viveza, da erudição insinuante e do humor proustiano em um grau capaz de surpreender o mundo : deviam acreditar piamente que a instituição que lhes havia dado a vida podia salvar também o mundo !! O quarto e acama estilo ''plantation '' de Carolyn, enquanto anotava isso. A geléia com café no quarto ; vidros de benzedrina estilhaçados junto ao saco de boxe , e aquelas caixas de madeira com o cheiro do rio que ela me deu ; a chuva do golfo ; a Canal Street como a Market Street --- rua imortal que me levava mais uma vez à ambiguidade da água universal seja do Mississipi ou do Pacífico ( um desses episódios com extensão de centenas de páginas para explicar quem eu era, porque estava narrando esta história e porque a leitora devia continuar lendo-a ; enormes blocos literários sólidos, cimentados, ou melhor , incrustados num denso meio de devaneio e comentários introspectivos e divinatórios misturados à incidentes tratados dramaticamente , ou mesmo vagos ou etéricamente em escala mais reduzida ... O manejo da complexa  cena mundial através da literatura tornava-se magistral assim : a governabilidade efetiva de atividades econômicas requerendo que os mecanismos estivessem sempre no seu devido lugar , ainda que os tipos e os métodos de regulação fossem muito diferentes em cada nível ----- somente nas seções intermediárias do DIÁRIO  toldado em meus efeitos com permitir que o contorno da ação ficasse obscurecido pela profusão de reflexões,  raciocínios e sincronicidades.  SEGUIA: (..) Assim as formas de coordenação dos mercados financeiros mundiais são muito diferentes dos processos de cooperação e competição equilibrada em setores industriais específicos no nível regional ---- Grande ''estouro '' na casa de apostas em Gretna ; o mercado e as luzes de Louise ---- A interdependência era relativa : fortes mecanismos de governabilidade nacional e regional poderiam vir a compensar a volatilidade no nível internacional e propiciar uma nova garantia para as economias específicas contra choques causados pela fraca governabilidade dos mercados mundiais. ----  Ajustando-se, trabalho conjunto. Entre usuário e qualquer homem que quer fazer um bom trabalho (perenne) sem estimar a produção ---- um custo pelo uso do dinheiro ou crédito. ''Porque todos querem  ----- perché si  vuol mettere ----- as idéias em ordem . Alguém  (um lista de honra - paideuma esvanescendo ) querendo os fatos .

K.M.

Balsa de Algiers , Canal St , no mercado.

Segui andando repleto de memórias perfeitas do mundo da noite, todas elas de alguma forma tão marcantes e milagrosamente ''inglesas'',  como se eu tivesse mesmo vivido tudo aquilo como um americano inglês. Parei em êxtase na Market St. , para reconstruir os eventos que os Estados Unidos , pretendente número um ao cargo de polícia mundial , já praticaram na era Reagan , em contraste absoluto à sua doutrina monetarista , paralelamente um hiper-keynesianismo estatista , ampliando constantemente , mediante gigantescos processos de endividamento interno e externo,  historicamente sem par , a economia do armamento improdutiva e , com isso , a parte disfarçada que ocupa a economia estatal em sua reprodução, arruinando-se dessa maneira até o ponto de ter que pedir esmolas de seus aliados para sua intervenção militar no Golfo Pérsico... (sem querer fui do apartamento que servia peixe com fritas até o apartamento de Carolyn e percebi, ao subir os degraus íngremes do prédio , que só em San Francisco e Lowell, Mass , havia degraus daquele jeito , e noites tão  goudtrichianas quanto  sugestivas do futuro. Talvez : ao mesmo  tempo, as polícias monetaristas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha tenham feito com que a decadência das estruturas internas sociais e econômicas ultrapassasse tanto o nível geral e médio dos países ocidentais que também a esse respeito, ao repercutir realmente A CRISE , houve uma tentativa de usurpação do governo precisamente por aquele poder que o monetarismo queria afastar definitivamente : a saber , o LEVIATÃ , o monstro da economia estatal , que sempre  se levanta como a FÊNIX das cinzas quando o mercado chega ao fim de sua ''sabedoria'' . Mas a visible hand do Estado executa nessa situação exatamente o mesmo princípio básico que a invisible hand do mercado, até achegada da turbulência. A lógica da estagnação econômica mundial avançou da periferia para os centros. Depois dos colapsos do Terceiro Mundo nos anos 80 e do socialismo real nos 90 , foi a vez dos próprios países desenvolvidos. O princípio da rentabilidade que governa nossos destinos ainda partirá para uma última corrida deslumbrada antes de percorrer , até o fim,  seu caminho duplo de ''emancipação negativa''  e destruição social-ecológica. Balsa de Algiers , Canal St , no mercado. A barragem no fim da estrada
K.M.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Os Cantos são uma épica sem enredo.

Os Cantos  (de Ezra  Pound ) são uma "épica sem enredo" (h. kenner). não se prestam ao ordenamento lógico-cronológico de princípio-meio-fim.  não possibilitam o traçado de um fio histórico-narrativo. os elementos dos cantos, através do ideograma (princípio que eisenstein, por sua vez, aplicou à montagem cinematográfica), se catalizam em torno de "focos de interesse" subordina- dos a uma hierarquia geral de valores (histórico-econômicos, ético-políticos, estético-críticos). o ideograma é a forca que, como um imã, ordena "a rosa na limalha de ferro" : um estilhaço arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforisma extraído dos analectos de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams, reminiscências pessoais
do poeta como as de seu aprisionamento no campo de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo geral do poema.

Haroldo de Campos.

Richmond, Califórinia. San Francisco. Hudson ---

----- A ciência da centralização baseia-se no controle 4.0 do cruzamento de dados. Comunicações fracionadas  horizontalmente , até os centros de poder mais altos  --- informações fluindo retransmitidas a executivos em todo o mundo , de acordo com o ''acesso controlado'' . Os gerentes das subsidiárias ficam perturbados quando vem o placar global . Atuam melhor quando conhecem apenas o necessário . Mas comigo não funciona assim.. Ora, controla-se uma grande companhia controlando suas despesas de capital , os produtos e , em grande detalhe , seu orçamento operacional.  A lógica da empresa planetária aumenta a dependência da sede mundial , do centro omnipotente de todas as informações, como numa mandala (.) ---- , eu disse.  O movimento em torno à mesa do café da manhã era uma cena puramente auditiva, alegre e congestionada pela cafeína e o tabaco, descomedidamente viva sobre as águas marrons de Nova Orleans ; olhei por sobre a amurada pensando que o rio Mississipi terminava na noite plausível do Golfo do México ; e que todos aqueles efeitos sonoros no pensamento daquele instante, que vinha me permitindo escutar outras vozes e sons além dos  ''meramente existentes'' , estavam vindo de um mundo fora dali , um mundo impessoal e indolor , distante das balsas do rio e do jazz de N; O. ; eu era  inteligente e refinado demais para ser feliz ali ---- esse era o laço impalpável que eu sentia unir-me ao Nada e à Bolsa de Valores . ---- Hoje , no entanto (eu disse ) ao cabo de vinte anos de versos despersonalizados e hiperintelectualizados , grande parte deles escritos como imitação de Eliot, Pound e Joyce , minhas anotações indicam que tornei-me formalmente discípulo desses Mestres como desculpa da minha despersonalização inata. Há muito de Eliot na minha pedanteria , e em minhas tendências místicas nadificantes ; todos aqueles quadros, livros, revistas e jogos de palavras no jardim dos séculos ; pela via Merrit, quando em Nova York  arranha-céus e luzes . Ora, eu queria ficar não apenas rico, mas também poderoso : acostumara-me a negociações bem sucedidas com reis, generais e sheiks , e  sabedores de que o balanço da minha companhia tornava o orçamento nacional de muitas potências  soberanas parecidos com os balancetes de minhas subsidiárias , não foi preciso me convencer de que a empresa planetária tornara-se o mais importante ator na política mundial. E quanto mais uma elite econômica aspirante (eu pensava ) questiona a sabedoria liberal convencional ou desafia elites e paradigmas mais antigos, mais crucial se torna a legitimação de sua influência ou autoridade política, não só inevitável, mas razoável na medida do possível ... Parvenu (!)  QUANTO BOM HUMOR (!) , aquele prazer era tal que  se tratava do meu ser no meu ser, sob a forma do ''para-si'' , eis o que chamaremos de ''acontecimento filosófico'' ---- como sempre, sem saber porquê, e`mais uma vez a caminho de San Francisco . O pensamento rachado e errante  (simultaneidade das anotações ) e encharcado , parcialmente afundado e virado pelo peso da água em seu interior, flutuando para o mar ao redor dos recifes, onde o barco oceânico passava uma vez mais por seu estranho destino multidimensional, como um espectro . Eu estava sentado sob a luz de um poste em alto-mar, lendo este diário. Meu espectro era um poeta descuidado, um olho, um homem , um espectro vigia da noite do Nada , pleno de panoramas e continentes  ---- sonhando com a garota da foto. A Causa Sui era o sentido do mundo ; o mundo a anunciava e se fazia mundo anunciando-a ; era por ela que , da irrupção do para-si no em-si , o em-si era ''mundificado'' . Todavia, a ''causa sui ''' não nos pertence como fazendo corpo com nosso projeto num avião à jato . Unidade transcendente do nosso projeto , pelo qual o para-si escapa do ciclo de produção imediato... para usar uma palavra de Tawney : ''PARVENUS "" (ironicamente )  .  Mas em comparação com a geração que tinha formado o ''sistema bancário do Leste '' , os escritórios de advocacia de Wall Street ,  as corretoras e o mundo da ''Segurança Nacional '' , os administradores não eram visivelmente patrícios, do Leste , ou egressos das universidades grãn-finas . Ironicamente , alguns dos maiores globalistas  do mundo vieram à luz no viveiro do isolamento norte-americano , o Meio -Oeste . Os ''administradores planetários'' passaram a constituir a corporificação que Thorstein Veblen há muitas décadas previu que terminaria por governar o país , ainda que mais como administradores do que como os ''construtores de impérios'' da propaganda . O ex-presidente da Exxon  , Clifton C. Gavin , havia iniciado a carreira como engenheiro de processos na refinaria de Baton Rouge. Os caminhos favoritos para a promoção sempre foram o departamento de finanças, contabilidade , engenharia e comercialização. Os homens que tinham subido aos mais altos escalões ali haviam chegado por distinguirem-se dos outros desenvolvendo habilidades organizacionais altamente lucrativas  ---- o mar na curva do rio ou apenas  a noite rolando em silêncio ( o Golfo do México era uma eternidade chuvosa e encharcada no banco de trás (neotomismo americano -Diário de Bordo) o mau tempo lá fora parecendo irremediável;  a paisagem vista da balsa , situada no meio de uma chuva contínua e sem igual , parecia porém ter uma doçura deslizante de silêncio , a calmante aproximação navegante . No outro dia o céu estava mais claro , mas com uma saraiva incerta que o vento morno fundia e dispersava : e eu discernia mais um daqueles dias tempestuosos pela frente , desordenados e agradáveis , em que os telhados, batidos por pancadas intermitentes que um raio de sol logo seca , deixam deslizar uma gota de chuva e, enquanto o vento não recomeça a rodopiar, alisam ao sol momentâneo , que as irisa , suas ardósias furta-cor ; um desses dias cheios de tantas mudanças de tempo , de incidentes aéreos, tempestades , que o preguiçoso não as dá por perdidas , pois se interessou profundamente pela atividade que a atmosfera tem desenvolvido em vez dele, agindo de certo modo em seu lugar , como um mago ; dias semelhantes a esses  tempos de rebelião ou de guerra que não parecem vazios ao estudante que não vai na aula , porque, nos arredores do Congresso americano ou lendo os jornais do dia , temos a ilusão de encontrar  , nos acontecimentos ocorridos , um proveito maior para nossa inteligência e uma desculpa para a perpetuação do ócio criativo ( as imagens cambiante do poeta simbolista , com suas ''associações múltiplas '' : personagens , situações, lugares, momentos vividos , emoções obsessivas , paixões amorosas e padrões de comportamento repetitivos ) . Enfim : dias em que aquele que nada fez além de exercícios físicos acredita extrair hábitos de trabalho superior do Éter meditativo e da Arte. Obviamente, estou falando do mundo vago do sono ; o narrador, confinado em seu quarto obscurecido, perdeu a noção do quarto em sua consciência,`que se expandiu em direção a outros lugares . Richmond, Califórinia. San Francisco. Hudson --- no apartamento de Carolyn , lado direito da Market  -



K.M.

O que é o Mississipi perto de Idaho ou West Yellowstone...

O que é o Mississipi perto de Idaho ou West Yellowstone , o rincão mais  distante e obscuro do Wyoming ;  é lá que as cabeceiras do Missouri , modestas como uma riacho, começam . Um tronco rachado por relâmpagos elementais nos cantos dos estados, descendp para um tempo incansável nos meandros do rio ---- estou no tempo (penso ) sou meu próprio tempo, como entendia Heidegger ; há uma transparência temporal coincidindo com a transparência da consciência : a consciência do tempo . Où mène-t-il pour nous soliciter si fort ?? Troncos, e mata fechada nas margnes , mais fechadas que em Hudson ---- iluminado pela luz do norte enquanto prossigo , mas nunca estive em Cascade ; as indústrias químicas e usinas elétricas ao longo das margens . Depois Williston Dakota do Norte e as neves de inverno. A máxima do ´seculo XVIII sobre vantagens comparativas de custos e divisão do trabalho aplicada em escala global à maximização do lucro --- David Ricardo . Racionalização do tempo - uniformidade - - controle de qualidade --- centralização e dominaçãodo mercado . Sioux City em um amanhecer cinzento , um conselho de chefes da caravana explicando a eliminação de grande parte dos gerentes operacionais da multinacional e sua pronta substituição por um sistema sistema de controle rigidamente dirigido pela sede em Nova York . Holding Company com alto grau de centralização , depois .... ----- O tempo é o limite opaco da consciência ordinária (eu disse) ; uma opacidade inatingível  numa transparência total ---- todos os nossos atos pressupondo uma compreensão pré-ontológica do tempo . Tematizando o ttempo como objeto de intuição (Bergson) somos alguma coisa caída no tempo ordinário buscando expandi-lo através do Nada da consciência ---- se nos voltamos para o tempo , através da consciência ordinária dele, para segurá-lo , ele se pulveriza em presente punctforme , naquilo que não é mais e que ainda não é (...) ----, concluí . O Missouri desembocava enorme nas águas do Mississipi em St. Louis, levando o tronco em sua Odisséia dos ermos de Montana até as noites nas margens de Cairo , Greenville e Matchez. Algiers - Louisiania (onde, agora, comecei a ler em alemão Dichtung und Wahrheit , de Goethe ; um Marat de reserva e trechos de St.Simon sobre a Regência . Ver-se-á mais tarde que Eliot difere de Válery na crença de que a poesia dever ter ''sentido '' , mas em vão procuraremos expressões como ''estado de consciência'' para reduzir o modo do ser do ''para-si '' ; a facticidade como reflexo do em-si sobre o para-si , transitando na superfície do para-si como um fantasma inconstante do em-si. A filosofia tem  seu lugar na poesia , mas apenas como algo que ''vemos'' ali entre outras coisas com que o poeta nos confronta. Quilômetros a oeste: Baton Rouge , onde algum fenômeno sobrenatural criou os ''bayoux '' ---- através do paciente olho da minha alma flutua o espectro das brumas, o fantasma , a luz da noite , o sudário de névoa que cobre o Mississipi . Espírito por espírito , todas essas formas de bayoux ( pântanos alagados da Louisiania) nadam pela noite anfíbia e aquosa dos palácios musgosos no manuscrito extenso e elaborado da noite. Concepção da poesia como uma espécie de pura e rara essência poética, sem relação com qualquer dos usos humanos práticos para os quais somente a técnica da prosa é apropriada.




K.M.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Desideratum neoliberal.

Acrescentei à ela que escrever esses apontamentos fragmentários estava me dando enorme prazer , como também a celebridade e as honrarias diárias que me haviam proporcionado : Doutor Honoris Causa consagrado pela Légion  D ´Honneur e outras três mercês nobilitantes por explicar excepcionalmente bem  a história da vitória ideólogica e teórica do neoliberalismo a partir de algumas universidades européias até tornar-se o senso comum repetido em todos os jornais do mundo , a começar pela mídia liberal americana. Com hipócrita circunspecção, citarei o historiador inglês Perry Anderson : ''Foi o tempo da resistência e da clandestinidade '' (zombei eu ) ''O período em que germinaram as idéias de Hayek , no seu Caminha da Servidão ,foi o fim da Segunda Guerra . As idéias seminais da futura sublevação igualitária do welfare State . Porém , os longos anos de hegemonia e sucesso do pensamento keynesiano e social-democrata mantiveram as idéias ultra-liberais de Hayek e de deus discípulos da escola austríaca e alguns seguidores norte-americanos numa espécie de ''resistência clandestina'', que Perry Anderson chega a comparar com uma sobrevivência dentro de uma rede quase maçônica de relações entre estes poucos intelectuais de então. Nenhuma concessão teórica ou prática em três , cinco décadas (um pouco de vinho neste copo aqui ---- Resumindo, cumprirei meu juramento (eu disse )e concluirei a reflexão : a partir dos anos 1960 as idéias de Hayek dominam as universidades americanas , e são também dessa época, até 1970 , as teorias da ''escolha pública '' das ''expectativas racionais '' ; da teoria dos jogos aplicada à economia ---- esta teoria torna-se hegemônica na Academia americana de forma completa e avassaladora. É aí também que se formou a geração de economistas que assumiram posições de comando das políticas econômicas implementadas nos países da periferia capitalista e dos gestores da safra de planos de estabilização da década de 1970 . E finalmente, para concluir a saga , a passagem dessas idéias do campo teórico para o político , com a chegada das forças liberais na forma de um quase ''dominó '' a partir das vitórias eleitorais de Tatcher em 1979 e de Reagan em 1980 ( e Kohl em 1982 --- ano do meu nascimento ) . Este foi o momento da virada dos governos das principais  economias do mundo , o ''desideratum '' que, em grandes linhas , vinha do discurso acadêmico neoliberal . É claro que implementadas oficialmente pelos governos, essas teorias perderam muito da sua dimensão formal ; foram retraduzidas para a prática e se transformaram nas políticas públicas pioneiras experimentadas por Tatcher na Inglaterra , organizadas em torno do tripé básico das ''desregulação'' , da ''privatização'' e da ''abertura comercial'' . Depois tais idéias foram consagradas por várias organizações multilaterais que se transformaram , na prática, no núcleo duro da formulação do pensamento e das políticas neoliberais voltadas para os ''ajustes econômicos '' ; políticas que passaram a fazer parte indissociável das recomendações e dos  condicionamentos do FMI , do BIRD , etc. O administrador americano global  , a despeito de sua fé exagerada no homem de negócios para gerir melhor os interesses do público do que os políticos, está pedindo hoje à Washington que aumente o apoio às suas firmas exportadoras para combater as vantagens que certos governos concedem aos seus concorrentes . ----- AS empresas e empregados (eu disse ) constituem praticamente a única renda nacional . Coordenação entre política nacional e política empresarial  (clamava-se ) ; o resultado pode até ser um trade-off organizacional de profunda importância ---- o resto do mundo importa a empresa global americana e os Estados Unidos importam o ''Estado empresarial '' ---- um fato quase cósmico que se destaca na história americana. 

Post Scriptum

Nenhuma angústia ante o Nada , com Heidegger ?? , pergunto à leitora; Angústia ante a liberdade , com Kierkegaard ??? Tanto faz para nós : a liberdade é aparição do Nada no mundo ; a liberdade (de fato ) está toda tomada pelo Nada . A liberdade é seu próprio Nada. A facticidade do homem ocidental pode ser anulada e seu universo pessoal dissolvido  com meditação. É através do que o Nada traz a possibilidade do Intento; ela esta lá , como o anúncio da liberdade : Aquilo que flutuava aos olhos de Adão inocente como o Nada da angústia está agora integrado nele e é ainda o Nada, a possibilidade do poder . ---- DE poder o quê (??) ----, pergunto-lhe : não tenho a mínima idéia, e isso não importa. Somente é dada a possibilidade do poder a quem o mereceu , quase como uma forma  superior de inocência , apenas para que se alcance uma mais alta expressão do sagrado .

K.M.

CIDADES (A. Rimbaud)


Que cidades! É um povo para o qual foram montados Apalaches e Líbanos de sonho! Chalés de cristal e madeira deslizam sobre trilhos e polias invisíveis. Crateras ancestrais circundadas de colossos e palmeiras de cobre rugem melodiosamente dentro dos fogos. As festas do amor badalam nos canais suspensos atrás dos chalés. Matilhas de sinos gritam nas gargantas. Associações de cantores gigantes chegam em trajes e adereços cintilantes como a luz nos cimos. Sobre as plataformas, em meio a precipícios, os Rolands buzinam sua bravura. Sobre as passarelas do abismo e os tetos dos albergues, o arder do céu hasteia os mastros. O colapso das apoteoses concentra os campos das alturas onde centaurinas seráficas evoluem entre as avalanches. Acima do nível das mais altas cristas, um mar atormentado pelo eterno nascimento de Vênus, repleto de frotas orfeônicas e do murmúrio de pérolas e conchas preciosas, - às vezes o mar se escurece com brilhos mortais. Nas encostas, safras de flores imensas bramem como nossas armas e taças. Cortejo de Mabs em robes russos, opalinas, trepam nas ravinas. E lá em cima, as patas nas sarças e cascatas, cervos sugam os seios de Diana. bacantes de subúrbio soluçam e a lua queima e uiva. Vênus penetra nas cavernas de ferreiros e eremitas. Torres de sinos cantam as idéias das pessoas. A música desconhecida escapa dos castelos de osso. Todas as lendas evoluem e élans invadem os burgos. O paraíso de tempestades despedaça. Selvagens dançam sem cessar a festa da noite. E, uma hora, desci na agitação de um bulevar em Bagdá onde companhias cantaram a alegria do trabalho novo, sob uma brisa espessa, circulando sem poder iludir os fantasmas fabulosos dos montes, onde se devia reencontrar. Que braços bons, que hora adorável vão me devolver essa religião de onde vêm meus sonos e meus movimentos mais sutis?

Arthur Rimbaud

Certa disposição de falar sobre lições de etiqueta.

 Resultado de uma encenação avant-garde contra todos os gestos marmóreos e rígidos de todos os operadores de swaps do mundo, dos quais o helenismo cheio de pó de suas análises macro-econômicas falavam de uma forma tão falsa quanto um teatro de corte alemão. Mas minha idéia geral, meu ''plano de trabalho'', assim como nos Cantos, de Ezra Pound, era apenas provocar uma espécie de encantamento divinatório e apaziguar o olhar furioso do mercado financeiro com um pensamento dilatado e brilhante que exprimia , no máximo , uma certa disposição de falar sobre lições de etiqueta. A velha escola de boas maneiras de toda ação política eficaz, tendo como fundamento uma comunidade econômica concreta, mas sem a versão distorcida e desoladora das zonas de livre comércio atuais, que haviam nos conduzido à um imperialismo burocrático, dissimulado e sem ideologia em sua última fase. ''Diós diasraiél (!) '', eu pensava  ''Shuadovíditis Krávinis (!!) '', clamava comigo mesmo, gabando-me de falar iídiche com grande desenvoltura. ''Mãe do céu, anjo de amor, festa de sóreta (!) Cascavilhando um poucquinho a catadura deste COISO (!) E isso aqui, ainda por cima, se deixa fotografar como nenhum outro (.) E se toma por escritor e ainda por cima russo , alemão, francês(!) Um BESSELER, julgando que sabia de cor o que F.A. Weber afirmava em Die griechische Entwick der Zahl pun Raumbegriffe in der griechischen Philosophie bis Aristoteles und der Begriff der Unendlichkeit, assim como o que Giovanni Domenico afirmava em ''Che cosa è la mente sana''. Constituído espiritualmente no terceiro capítulo da edição de J.H. Peterman (Berlim, 1895), da ''Pistis Sophia'' : ''Opus gnosticum Valentino adjudicatum a codice manuscripto coptico Londinensi descripsit et latine vertir M.G. Schwartze. Em outros palavras: que eu me considero um Valentino. Mas não, trata-se de outra coisa.

K.M.

Chegada em Nova Orleans .

Comi como um rei num restaurante a beira-mar com meu último  dinheiro até chegar em Nova Orleans e sintonizar suas rádios regionais no carro ---- não muito longe do jazz em ato ao sentir o cheiro do grande rio . Mas uma vez tomada a decisão, arrependi-me e ajuntei num pós-escrito : ''O cheiro da argila, pétalas e melado, como em Algiers ,  lendo aquele poema de 403 versos (aos quais são acrescentadas, todavia , sete páginas de notas ) , encontra Eliot maneira de incluir citações de , alusões a , ou imitações de pelo menos 35 escritores diferentes (alguns dos quais , como Shakespeare e Dante , chamados a contribuir diversas vezes , bem como várias canções populares ; e de introduzir passagens em seis ou  sete línguas estrangeiras, incluindo o sânscrito . A idéia de miscelânea literária fôra inquestionavelmente uma idéia tomada de empréstimo à Pound '' . No entanto , nunca vou esquecer da expectativa louca daquele momento: a rua de poucas casas, as palmeiras, as imponentes nuvens do fim de tarde no Mississipi . Eu me decidira após fazer um exame do horizonte à minha volta e inspecionar meus possíveis ---- o resíduo eliotiano de invenção original como empréstimos ou adaptações de outros escritores ---- : eu buscava a todo custo recompor com o que me lembrava, e lembrava-me da maior parte de tudo que lia ; minha erudição tornara-se capaz de fazer soçobrar a falsidade das informações por dentro . Alusões eruditas misteriosas e macarrônicas , sempre acompanhadas de café forte como petróleo . Já a refeição do meio-dia me era  indiferente ; comer pão integral ou , ao contrário salada sem nenhum pão, ou jejuar por um ou dois dias ; ou ficar uma ou duas noites sem dormir e então acordar na velha casa de campo do outro lado do estado . quarenta horas sem se deitar era algo que nenhum escritor ex nihilo conseguiria apreciar . Durante o café  da manhã eu me sentia uma ser psíquico larvar, procurando um pretexto para a instrospecção do Nada  ---- a xícara de café e o jornal , um cigarro poético e perfumado . O índice da Metal Bulletin do minério com teor de 62% de ferro negociado no porto chinês de Quingdao subiu 6,5% , para  $U 92,23 a tonelada ; foi a primeira vez em dois anos e meio que a cotação  ficou acima dos $U 90 e agora o avanço acumulado em 2017 é de 17%. Naquelas manhãs em que folheava o jornal ao sol, na porta de alguma padaria , meu pensamento era vivo e gentil ; e eu contava para mim mesmo as histórias que aprofundavam melhor certos conhecimentos --- se o maior produtor mundial de aço era a China, que não era nem uma economia de mercado , eu me contava também a história dos mais de 700 milhões de  toneladas de capacidade ociosa do setor siderúrgico existente no mundo ---- a China era responsável por 400 milhões : vinte bilhões por ano de subsídios para sustentá-la e poder praticar preços ''políticos '' . Essa última categoria era, numa cabeça dada ao anedótico como a minha, bem vasta . A ascensão da empresa global chinesa fôra deflagrada pelo credo no culto da grandeza e na ciência da centralização . O sucesso final do shopping center chinês global dependerá da venda das idéias , e não se pouparão esforços para vendê-las : note-se que a China não está apenas liquidando empréstimos e financiamentos contra sua economia , mas também fazendo as mesmas operações externamente , mas como credor . A nova estratégia de inserção  financeira da economia chinesa não é novidade , assim coo a gradual internacionalização do yuan, que ainda é marginalizado nas transações dos mercados cambiais globais . Eis o  caráter essencialmente dramático da minha imaginação ---- permanente exploração das possibilidades do drama poética moderno ---- tornamo-nos parte dessa mitologia empresarial moderna ( a ausência de ''objetividade'' de certas decisões , sua imanência --- o crescimento das empresas como ideologia e arma, enquanto  continuava a abordar a literatura inglesa como um perfeito norte-americano : com aquela combinação de avidez e isenção peculiar aos americanos , e com leitura superior às do crítico inglês comum no tocante às literaturas antigas e modernas do Continente . Alcancei êxito, como poucos escritores alcançaram , na tarefa enormemente delicada de estimar escritores ingleses mortos ; e escritores de língua inglesa em relação a escritores do Continente. Ora um extravasamento econômico oracular , ora um objeto linguístico deliberadamente construído para produzir certo efeito ...

K.M.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Blast e Terra Devastada.

A aparição em Londres da revista "Blast", em junho de 1914 anuncia publicamente o nascimento do "Vorticismo", um movimento vanguardista aparentado com o futurismo porém que rompia com ele no essencial. Até o "New York Times" da época destacou a ruptura que avizinhava-se. Segundo definiu-a Pound em carta a seus pais "a mais inteligente revista de Londres. Vocês detestariam-na". Lewis havia tomado a idéia de "Blast" dos cubistas. Marinetti esteve em Londres em 1913. A revista não somente destacava em conteúdos senão revolucionava a forma até nas cores (rosa-choque em plena época vitoriana!) e na tipografia. Seu objetivo era "devastar": devastar a cultura francesa, o humor inglês, a igreja anglicana, a cultura popular, a imprensa tradicional, as vanguardas arrogantes, a burguesia segura e estabelecida. Na revista escreverão, entre outros, Ford Madox Ford e T.S. Eliot. Ford Madox Ford escrevera Nostromo em parceria com Joseph Conrad e Eliot desenvolvera uma magistral flexibilidade de vocabulário e métrica, produzindo uma das expressões definitivas dos estados de espírito patético-irônicos, estético -mundanos do temperamento fin de siècle . O caráter distintivo de Eliot estava em seu fraseado, um bom gosto sempre absoluto e seguro : imagens sempre precisas, exatas . Sempre debatendo coisas com sua própria consciência . Até poemas satíricos sobre a Nova Inglaterra , e  os conflitos de um puritano que se tornou artista em Terra Devastada--- a emoção religiosa que lhe possa tomar o lugar ; a aridez estética e espiritual da classe média anglo-saxônica oprimindo tanto Londres quanto Boston. A esterilidade das grandes cidades modernas é a atmosfera na qual se situa Terra Devastada ; em meio a ela , emergem breves e vívidas imagens ,são destilados breves e puros momentos de emoção e reflexão ; mas estamos cônscios de que, ao nosso redor , milhões de seres anônimos cumprem estéreis rotinas de trabalho , desgastando a  alma em labores intermináveis ,  cujo produto nunca lhes traz tanto proveito quanto gostariam . Agora,  o poeta estava novamente postado na planície árida, e o estéril e podre mundo londrino parecia desmoronar  à sua volta : o poema termina numa miscelânea de citações de um porção de literaturas. Como os Cantares de Pound, a Terra Devastada de Eliot estava repleta de citações e alusões literárias. Além da forma totalmente fragmentária, Eliot e Pound fundaram , e fato, toda uma escola poética que dependia, numa escala sem precedentes, da referência, da citação e do plágio . 

K.M.