segunda-feira, 14 de setembro de 2015

5 - Fumus malus juris (1)

Seria o Kalachakra Hotel (?) Não me lembro mais; de qualquer forma, era na Avenida Rio Branco, às nove horas, sob o sol da manhã, e eu estava hospedado no Hilton... era uma fronteira e havia ainda, na minha mente, todo um drama literário que subsequentemente inundou Juiz de Fora com as tonalidades de Nova York. As estrelas do palco flanavam para dentro e para fora de minhas pálpebras fechadas: Barbara, Berman, Melissa, Betty... algumas de vestidos compridos, outros decotados, a figurante de cabelos cor-de-fogo que eu engravidei e nosso reencontro em êxtase na cidade vizinha (era inexplicável que ela fosse sandumonense); depois, algumas lembranças mórbidas na West 9 th, outras defumadas como presunto de parma; algumas desafiadoras, muitas picantes, mas todas igualmente posando, gesticulando, declamando , todas tentando jogar a outra para fora do palco, como uma míríade de vozes e eus que devia ser controlada a qualquer custo. Penso no trabalho de recapitulação tolteca de Carlos Castaneda; no minuto liberado do tempo de Proust; na 'ruptura de nível da consciência. Vou até a janela do quarto e vejo o footing na avenida lá embaixo lagarteando até a Rua Halfeld: os fundadores da cidade são alemães e a música, naturalmente, é muito obedecida em Juiz de Fora. Eu mesmo aprendi a tocar piano aqui, pianino, de ouvido: nesta parte do mapa um exército de pianistas e subpianistas (como eu), meninos e meninas, adolescentes machucando-se os dedos, deformam nosso Chopin há mais de 100 anos, na tentativa de suprimir o tempo: instruído na leitura das ''Mazurcas'', posso afirmar : ----- São canhões dissimulados sob flores (.) ------, e pela geometria dos ''Estudos'', a previsão óbvia de Debussy, Ravel, Bartók.  O loplop instalou-se para sempre nos meus dedos.  Eu não havia pensado num banquete visual tão apetitoso quando coloquei a cabeça pela janela do Hilton, no quarto andar: donas de olhos, bocas e outras delícias passeando no calçamento , a pele alva ao sol; meus olhos navegavam na Rio Branco  como numa baía e eu acendi um charuto. Era como estar num limbo, um ato de levitação no limiar do sonho. Dois dias antes eu estava atravessando o espaço aéreo entre Nova York e São Paulo. Ainda em NY , eu tinha sonhado em pegar um barco e descer o Mississipi, só para seguir o rio até sua fonte. A idéia de fonte ocupava meu espírito todos os dias. Mas havia ainda outros lugares para visitar: o Tibet e a Mongólia . Os espíritos ancestrais  me chamavam, não poderia deixá-los esperando muito mais, mesmo sabendo que a verdadeira fonte espiritual é totalmente psíquica. Você entra no silencio extra-sensorial e ao mesmo tempo é consciente do seu entorno físico e do seu corpo  energético. Então você começa a ver. " Quando Kalki-Maitreya foi para o Tibet (.) '', o velho e bom clichê espiritual tibetano. Fica-se  longe só tempo suficiente para aprender a lição. Eu aprendi a minha muito depressa, e agora comprarei um apartamento com o dinheiro juntado nos Estados Unidos. Necessito profundamente ter um lugar só meu, e rápido. Agora tenho vinte e cinco anos , estou sozinho no mundo, descobri o caminho da iniciação espiritual e preciso ter meu própiro ninho isolado no alto. E séra de repente, surpreendendo uma boa e pacata vizinhança de classe-média do interior de Minas Gerais. Minha lição de casa está toda feita: sei que a Terra é redonda, sei que existem mapas da Terra que designam um centro de energia psíquica chamado Shambala, mas Shambala não está nesta dimensão, a não ser em estado de Jina.. ------ Você sonha que está sonhando (?!) -----, perguntei a Julia, pelo telefone, naquela mesma manhã. Não falava com ela há um ano. ------ Você sai do seu locus perdidibus e se mistura com os outros habitantes da Terra(: você visita outras terras, mistura-se à elas como um húmus (: você tem o pressentimento estelar como uma ruptura de nível(?) acha que eu toco em cordas abafadas, ou minha música é um côco que cai do coqueiro com um baque surdo no chão (?) não é certo fazer inventários dos próprios desejos e compará-los com suas conquistas(: esses agachamentos do eu são puro condicionamento, apenas o rastreador de energia psíquica está vivo (: se eu fosse Senhor dos Céus por apenas um dia faria chover todos os sonhos, desejos e anseios mais elevados que a cultura já produziu no ser humano, e veria-os se enraizar, cada vez mais capazes do truque de rastreamento (.) ------, meu charuto estava acabando, enquanto eu imaginava os quadris provocantes de Julia após um ano, pensando que antes ela usava tranças... Reconheceria-a também pela matidez da voz: esses eram os primeiros sinais a plantarem próximas cenas na minha cabeça , que eu ia admirando por contaminação retrospectiva. Juiz de Fora, dizem, antecipou-se a São Paulo em certos pontos da industrialização: penso naquelas antigas fábricas de cerveja. Vou até o freezer enquanto ouço Julia falar no telefone: -----Agenciamento (.) -----, ela diz. O que me resta da imagem é esta palavra. Mas importante sobremaneira é a palavra ''Agenciamento'', essa eu conheço bem: ------ Tem muitas repercussões, como um algibe entupido de silêncio e passagens secretas (.) -----, no estado de consciência em que eu tinha entrado, cada coisa ordinária à minha volta era objeto de estima , tudo aquilo que não me levava a coisa alguma era importante. Tudo merecia agenciamento de consciência. ------, repeti para Julia, que tinha andado estudando Deleuze: ----- ''Agenciamento'' é uma palavra que soa rápida (continuei, enquanto abria meu blog na internet) e mesmo assim ela sugere imobilidade , movimento imóvel , etc(: palavra vítrea: um espelho fluido que reflete raios assim como árvores e consciências(: é uma substância que sugere água, música, luz e a fortaleza de um submarino (: por isso, soa também remota, protegida e isolada, ligeiramente exótica e, se tem alguma cor, definitivamente é azul(: musicalmente, eu a designaria como o som das minhas cordas internas, ressoantes como uma guitarra elétrica(: ou música dedilhada, de qualquer forma, acompanhada de frutas tropicais madurando  e finas colunas de fumaça clara (: nada a não ser o movimento das partículas de pó num raio de sol, o ritmo evanescente de ascensão e evaporação (e, nesse exato instante, o flap flap dos meus pés no chão do quarto e figuras de nuvens silhuetadas contra persianas entreabertas(.) -----, cinco dias depois, mais sóbrio, voltei a ligar para Julia, que estava namorando outro, e ela perguntou o que eu pretendia fazer da vida. ----- Comprei um apartamento enorme, no bairro Santa Helena(: você tem que vir conhecê-lo, Julia, ele tem uma vista perfeita do por-do sol no outono, como um portal para outra dimensão(.) o crepúsculo é a fresta entre os mundos, existe até uma yoga só para recolher energia do por-do-sol (.) ------, e expliquei a ela que andando no centro da cidade, tinha encontrado o coordenador daquele projeto de cidadania ativa da UFJF, e ele me convenceu a voltar para a faculdade de direito. ----- Achei hilariante que depois de tanto tempo, ele tivesse me parado na rua e me  dito que na sua nova ONG (Organizaçao Não-Governamental) eu havia sido inscrito como responsável jurídico da instituição e sócio-fundador. ----- Mas, Gilberto (eu disse) eu não sou formado , e tranquei a faculdade (: cheguei de Nova York há uma semana e pretendia descansar por uns tempos (.) -----, bem, aquela era uma boa história para Julia , e me pareceu um bom presságio para o futuro, uma promessa de virtualidade demiúrgica. Eu não sabia o que fazer, quando voltei para meu quarto no Hilton, a não ser esfregar as pedras dos meus olhos na paisagem ( uma cidade vazia, cercada de conchas vazias de festas passadas). No centro desse glissandi, o AGENCIAMENTO em si: Mozart para o bandolim, e não Segóvia depenando Bach. A fala de furnas brenhentas de Manoel de Barros, e um inconcebível agenciamento de palavras difíceis para mostrar todo o resto em Buster Keaton. O riso cósmico.Tinha acabado de criar meu primeiro blog na internet, o Portal Pineal, e não queria muito trabalhar naquele momento, precisava de tempo para organizar minhas idéias e iniciar as combinações intensas que me levariam à iluminação. Refletindo um pouco em tudo aquilo, logo comecei a considerar Gilberto uma pessoa confusa: ----- Eu preciso que você assine uns papéis, K (: não queremos gastar dinheiro contratando um advogado, temos pouco dinheiro até fecharmos as parcerias com o Governo Federal para executarmos programas sociais, e isso tudo deve estar assinado até lá(: nós vamos te remunerar mensalmente (.) -----, ele disse, e me passou seu telefone e o endereço da instituição. No dia seguinte, eu apareci por lá e, creia-me, assinei toda aquela papelada(:até mesmo a ata de fundação da ONG, retroativamente . Eu ria a cada página que virava: ''É tudo tão fácil, meu Deus (.)''. Perguntei a Gilberto quais eram as atividades atuais da ONG e ele me mostrou fotos de um Centro de Tecnologia Social em Lima Duarte, onde passa o Rio do Peixe. Paisagem revigorante: na beira do rio o silêncio põe ovo. ----- É grande, hein (?) ------,  comentei. ------ É um projeto de geração de renda, mas no momento ainda não está gerando renda  suficiente (: volte a estudar, cara, preciso que você auxilie o pessoal do Centro com os contratos (.) ------, ele disse.  ------ Já transferi meu curso para outra faculdade (: que tipo de contratos (?) -----, perguntei de novo.  ----- Todos (: he he... é que como não há ninguém da área jurídica trabalhando conosco, deixamos essas coisas para a última hora (.) ------, imediatamente, percebi que eu não era a única pessoa louca no mundo. Tinha estudado direito administrativo e trabalhista o bastante para apreciar ligeiramente receoso todo o ''fumus malus juris'' daquela bomba jurídica. Mas nossa história não será um manual jurídico do Terceiro Setor ou uma exegese poética da Lei 8.666. ----- Todo mundo ali acredita que pode melhorar de vida com nossa ajuda, mas isso ainda não está acontecendo(: veja o que você pode fazer, K (.) -----, Gilberto sugeriu, me passando endereços e linhas de ônibus para Lima Duarte. ------ Eu (?!) -----, pensei comigo, surpreso. Primeiro, Gilberto deixou que seu currículo de pesquisas falasse por si; mas ele não sentia mais a mesma coisa por aquele negócio de geração de renda, estava muito deslumbrado com o gigantismo dos programas sociais do governo, as viagens e reuniões em Brasilia; o novo status era um poluidor jurídico; o parto da grana pública era um projeto de geração de carma, não de renda. Agora ele estava disposto a visualizar seu papel mais sob o ângulo de chegar aos confins financeiros do Ministério do Esporte.  ------ Eu não precisarei cumprir horário, nem bater ponto aqui na sede (?) -----, perguntei à ele, esperançoso de que fosse verdade. -----Preciso que você primeiramente percorra nossos projetos e regularize tudo (.) -----, respondeu ele ----- Depois voce pode trabalhar na sede diariamente (.) ------, concluiu,. Ele aprendeu com aqueles jogadores do terceiro setor as mil e uma maneiras de dizer ''Eu não sei '' a respeito de cada projeto, fazendo tudo parecer muito bonito. Mas o ''Eu não sei '' o que seria melhor ---- para o projeto, para a universidade, para a Câmara Municipal, para o Ministério do Esporte, para si mesmo, para todas as empresas no páreo, menos para os beneficiários... o que seria realmente melhor parecia ser algo bem relativo e condicionado por um xadrez de canetadas. Todo mundo daquele ramo estava cansado de saber o que era o melhor: caminhões de dinheiro, torrentes de verbas públicas ejaculadas pelo ministro e o vice-ministro, pacotaços de programas sociais de tirar a respiração de qualquer advogado, com verbas para trezentos, quatrocentos núcleos ou mais, que infundiriam uma confiança generalizada na turma local do partido, além de soberba e desprezíveis maquinaçõeszinhas políticas de homens-partido. A simples presença do dinheiro público na instituição injetava veneno nas pessoas. . ------ Mas esse tipo de grana é muito tímido para iniciantes e só aparece condicionado por muita politicagem e acordos de bastidores. Vamos criar um capital político? , é quando o desejo de todo mundo é forçado a brotar na estufa da rivalidade sutilmente administrada, ou recompensada... certo  (?) -----, ele disse por fim, e eu voltei para o hotel com os nomes de todas aquelas cidades mineiras retinindo na minha cabeça e tendo meu novo blog como único espaço onde eu podia pensar livremente. Às vezes, podia me ver sonhando de olhos bem abertos, me movendo entre todas as descrições possíveis da realidade, sem saber se eu estava na cama ou sentado diante do notebook; e ás vezes, quando eu esperava fechar os olhos e me entregar à mais deliciosa sensação de sonho, via-me lutando com um parágrafo cheio de luz intelectual desconhecida, num corte do pensamento habitual. Atravessar esse golfo de palavras insones era inebriante: todas as rodovias da mente eram esfolitivas, e o golfo era um grande drama de luz e vapor nteligentes, com nuvens grávidas de frases sempre desabrochando no meu cérebro. Em Cataguases, fiquei dois dias sozinho num quarto louco de uma louca fundação, fui numa rave, redigi contratos de prestação de serviços, de estagiários, termos de cooperação, termos de ajuste de conduta trabalhista, dei uma aula sobre processo legislativo, entrevistei pessoas, refiz todo um convênio entre ONGs e Câmara Municipal e revisei um imenso edital de licitação. Quando acordei, achei que estava novamente em Lima Duarte. Ao entardecer, olhei pela janela de onde eu estava e vi os picos enevoados de um conjunto de montanhas sugerindo uma vasta serra verde por trás. Vi nuvens combatendo; elas colidiam entre si  como dirijíveis aleijados , deixando rastros de detritos enlaçados flutuando no céu. Parecia-me de novo que estava numa fronteira, e que a paisagem exterior tinha sido internalizada com precisão mediúnica, que dois mundos inteiramente distintos tinham se fundido impecavelmente, após lutarem pelo domínio do meu espírito. De repente, me lembrei do Centro de Tecnologia Social visto de fora, na tarde anterior. Era óbvio que as instalações conhecidas como ''sede'' foram prejudicadas por terem estado sob o encargo do departamento de horticultura; mas seu lado sul, que já tinha sido uma inclinação gramada e vazia, era agora uma cerca viva ondulante e perene, cujos dois tentáculos abraçavam um pequeno jardim estilizado.  ----- Gastaram muito dinheiro na nossa vitrine (alguém me soprou no ouvido), mas faltou para a plantação e o escoamento (.) -----, o jardim era delimitado por uma cerca de buxo perfumada e cuidadosamente aparada. ---- Pode ser (respondi ), mas a jardineira daqui é uma verdadeira artista (.) ----, diante de mim, uma extensão de flores anuais cascateava colina abaixo, espraiando-se  pelo terreno plano numa enxurrada de encarnados, dourados, amarelos, bromélias e rosas. Aqui e ali, discretamente colocadas, espécimes experimentais testavam o clima; bem próximo do longo muro da parte sul da sede, alguém ,numa época qualquer, sem se dar ao trabalho de pedir licença, nem verbas, nem permissão à administração da ONG ou à equipe encarregada da manutenção do terreno, havia plantado um renque de figueiras e pessegueiras belíssimas, fazendo em seguida uma espaldeira.  ----- O povo por aqui é vivedor, jeitoso (... -----, comentei com o auto-proclamado diretor do CTS, velho líder comunitário de uma invasão urbana em Juiz de Fora, atirado ali no meio daquela gente para tentar falar mais alto que os outros. Acendi um cigarro e esvaziei a mente admirando pesados e reluzentes figos maduros e pêssegos inchados de sumo pendendo dos galhos. Mais tarde ( explicaram-me) todas aquelas frutas desapareciam, sem jamais reaparecer nas lojas de doces de Lima Duarte ou nas sedes das agremiações dos membros do projeto. Então algum dinheiro era depositado nas contas dos trabalhadores, e um cálculo estranho aparecia nas notas fiscais. Tampouco eram vendidos em algum evento da ONG em nome do departamento de horticultura para levantar fundos ou remunerar os verdadeiros produtores. Procurei me fixar na beleza do jardim, na identidade da jardineira. Aquelas flores ao sol quebravam um engradado de estrelas na minha cabeça. 
(continua)