Seria o Kalachakra Hotel (?) Não me lembro mais; de qualquer forma, era na Avenida Rio Branco, às nove horas, sob o sol da manhã, e eu estava hospedado no Hilton... era uma fronteira e havia ainda, na minha mente, todo um drama literário que subsequentemente inundou Juiz de Fora com as tonalidades de Nova York. As estrelas do palco flanavam para dentro e para fora de minhas pálpebras fechadas: Barbara, Berman, Melissa, Betty... algumas de vestidos compridos, outros decotados, a figurante de cabelos cor-de-fogo que eu engravidei e nosso reencontro em êxtase na cidade vizinha (era inexplicável que ela fosse sandumonense); depois, algumas lembranças mórbidas na West 9 th, outras defumadas como presunto de parma; algumas desafiadoras, muitas picantes, mas todas igualmente posando, gesticulando, declamando , todas tentando jogar a outra para fora do palco, como uma míríade de vozes e eus que devia ser controlada a qualquer custo. Penso no trabalho de recapitulação tolteca de Carlos Castaneda; no minuto liberado do tempo de Proust; na 'ruptura de nível da consciência. Vou até a janela do quarto e vejo o footing na avenida lá embaixo lagarteando até a Rua Halfeld: os fundadores da cidade são alemães e a música, naturalmente, é muito obedecida em Juiz de Fora. Eu mesmo aprendi a tocar piano aqui, pianino, de ouvido: nesta parte do mapa um exército de pianistas e subpianistas (como eu), meninos e meninas, adolescentes machucando-se os dedos, deformam nosso Chopin há mais de 100 anos, na tentativa de suprimir o tempo: instruído na leitura das ''Mazurcas'', posso afirmar : ----- São canhões dissimulados sob flores (.) ------, e pela geometria dos ''Estudos'', a previsão óbvia de Debussy, Ravel, Bartók. O loplop instalou-se para sempre nos meus dedos. Eu não havia pensado num banquete visual tão apetitoso quando coloquei a cabeça pela janela do Hilton, no quarto andar: donas de olhos, bocas e outras delícias passeando no calçamento , a pele alva ao sol; meus olhos navegavam na Rio Branco como numa baía e eu acendi um charuto. Era como estar num limbo, um ato de levitação no limiar do sonho. Dois dias antes eu estava atravessando o espaço aéreo entre Nova York e São Paulo. Ainda em NY , eu tinha sonhado em pegar um barco e descer o Mississipi, só para seguir o rio até sua fonte. A idéia de fonte ocupava meu espírito todos os dias. Mas havia ainda outros lugares para visitar: o Tibet e a Mongólia . Os espíritos ancestrais me chamavam, não poderia deixá-los esperando muito mais, mesmo sabendo que a verdadeira fonte espiritual é totalmente psíquica. Você entra no silencio extra-sensorial e ao mesmo tempo é consciente do seu entorno físico e do seu corpo energético. Então você começa a ver. " Quando Kalki-Maitreya foi para o Tibet (.) '', o velho e bom clichê espiritual tibetano. Fica-se longe só tempo suficiente para aprender a lição. Eu aprendi a minha muito depressa, e agora comprarei um apartamento com o dinheiro juntado nos Estados Unidos. Necessito profundamente ter um lugar só meu, e rápido. Agora tenho vinte e cinco anos , estou sozinho no mundo, descobri o caminho da iniciação espiritual e preciso ter meu própiro ninho isolado no alto. E séra de repente, surpreendendo uma boa e pacata vizinhança de classe-média do interior de Minas Gerais. Minha lição de casa está toda feita: sei que a Terra é redonda, sei que existem mapas da Terra que designam um centro de energia psíquica chamado Shambala, mas Shambala não está nesta dimensão, a não ser em estado de Jina.. ------ Você sonha que está sonhando (?!) -----, perguntei a Julia, pelo telefone, naquela mesma manhã. Não falava com ela há um ano. ------ Você sai do seu locus perdidibus e se mistura com os outros habitantes da Terra(: você visita outras terras, mistura-se à elas como um húmus (: você tem o pressentimento estelar como uma ruptura de nível(?) acha que eu toco em cordas abafadas, ou minha música é um côco que cai do coqueiro com um baque surdo no chão (?) não é certo fazer inventários dos próprios desejos e compará-los com suas conquistas(: esses agachamentos do eu são puro condicionamento, apenas o rastreador de energia psíquica está vivo (: se eu fosse Senhor dos Céus por apenas um dia faria chover todos os sonhos, desejos e anseios mais elevados que a cultura já produziu no ser humano, e veria-os se enraizar, cada vez mais capazes do truque de rastreamento (.) ------, meu charuto estava acabando, enquanto eu imaginava os quadris provocantes de Julia após um ano, pensando que antes ela usava tranças... Reconheceria-a também pela matidez da voz: esses eram os primeiros sinais a plantarem próximas cenas na minha cabeça , que eu ia admirando por contaminação retrospectiva. Juiz de Fora, dizem, antecipou-se a São Paulo em certos pontos da industrialização: penso naquelas antigas fábricas de cerveja. Vou até o freezer enquanto ouço Julia falar no telefone: -----Agenciamento (.) -----, ela diz. O que me resta da imagem é esta palavra. Mas importante sobremaneira é a palavra ''Agenciamento'', essa eu conheço bem: ------ Tem muitas repercussões, como um algibe entupido de silêncio e passagens secretas (.) -----, no estado de consciência em que eu tinha entrado, cada coisa ordinária à minha volta era objeto de estima , tudo aquilo que não me levava a coisa alguma era importante. Tudo merecia agenciamento de consciência. ------, repeti para Julia, que tinha andado estudando Deleuze: ----- ''Agenciamento'' é uma palavra que soa rápida (continuei, enquanto abria meu blog na internet) e mesmo assim ela sugere imobilidade , movimento imóvel , etc(: palavra vítrea: um espelho fluido que reflete raios assim como árvores e consciências(: é uma substância que sugere água, música, luz e a fortaleza de um submarino (: por isso, soa também remota, protegida e isolada, ligeiramente exótica e, se tem alguma cor, definitivamente é azul(: musicalmente, eu a designaria como o som das minhas cordas internas, ressoantes como uma guitarra elétrica(: ou música dedilhada, de qualquer forma, acompanhada de frutas tropicais madurando e finas colunas de fumaça clara (: nada a não ser o movimento das partículas de pó num raio de sol, o ritmo evanescente de ascensão e evaporação (e, nesse exato instante, o flap flap dos meus pés no chão do quarto e figuras de nuvens silhuetadas contra persianas entreabertas(.) -----, cinco dias depois, mais sóbrio, voltei a ligar para Julia, que estava namorando outro, e ela perguntou o que eu pretendia fazer da vida. ----- Comprei um apartamento enorme, no bairro Santa Helena(: você tem que vir conhecê-lo, Julia, ele tem uma vista perfeita do por-do sol no outono, como um portal para outra dimensão(.) o crepúsculo é a fresta entre os mundos, existe até uma yoga só para recolher energia do por-do-sol (.) ------, e expliquei a ela que andando no centro da cidade, tinha encontrado o coordenador daquele projeto de cidadania ativa da UFJF, e ele me convenceu a voltar para a faculdade de direito. ----- Achei hilariante que depois de tanto tempo, ele tivesse me parado na rua e me dito que na sua nova ONG (Organizaçao Não-Governamental) eu havia sido inscrito como responsável jurídico da instituição e sócio-fundador. ----- Mas, Gilberto (eu disse) eu não sou formado , e tranquei a faculdade (: cheguei de Nova York há uma semana e pretendia descansar por uns tempos (.) -----, bem, aquela era uma boa história para Julia , e me pareceu um bom presságio para o futuro, uma promessa de virtualidade demiúrgica. Eu não sabia o que fazer, quando voltei para meu quarto no Hilton, a não ser esfregar as pedras dos meus olhos na paisagem ( uma cidade vazia, cercada de conchas vazias de festas passadas). No centro desse glissandi, o AGENCIAMENTO em si: Mozart para o bandolim, e não Segóvia depenando Bach. A fala de furnas brenhentas de Manoel de Barros, e um inconcebível agenciamento de palavras difíceis para mostrar todo o resto em Buster Keaton. O riso cósmico.Tinha acabado de criar meu primeiro blog na internet, o Portal Pineal, e não queria muito trabalhar naquele momento, precisava de tempo para organizar minhas idéias e iniciar as combinações intensas que me levariam à iluminação. Refletindo um pouco em tudo aquilo, logo comecei a considerar Gilberto uma pessoa confusa: ----- Eu preciso que você assine uns papéis, K (: não queremos gastar dinheiro contratando um advogado, temos pouco dinheiro até fecharmos as parcerias com o Governo Federal para executarmos programas sociais, e isso tudo deve estar assinado até lá(: nós vamos te remunerar mensalmente (.) -----, ele disse, e me passou seu telefone e o endereço da instituição. No dia seguinte, eu apareci por lá e, creia-me, assinei toda aquela papelada(:até mesmo a ata de fundação da ONG, retroativamente . Eu ria a cada página que virava: ''É tudo tão fácil, meu Deus (.)''. Perguntei a Gilberto quais eram as atividades atuais da ONG e ele me mostrou fotos de um Centro de Tecnologia Social em Lima Duarte, onde passa o Rio do Peixe. Paisagem revigorante: na beira do rio o silêncio põe ovo. ----- É grande, hein (?) ------, comentei. ------ É um projeto de geração de renda, mas no momento ainda não está gerando renda suficiente (: volte a estudar, cara, preciso que você auxilie o pessoal do Centro com os contratos (.) ------, ele disse. ------ Já transferi meu curso para outra faculdade (: que tipo de contratos (?) -----, perguntei de novo. ----- Todos (: he he... é que como não há ninguém da área jurídica trabalhando conosco, deixamos essas coisas para a última hora (.) ------, imediatamente, percebi que eu não era a única pessoa louca no mundo. Tinha estudado direito administrativo e trabalhista o bastante para apreciar ligeiramente receoso todo o ''fumus malus juris'' daquela bomba jurídica. Mas nossa história não será um manual jurídico do Terceiro Setor ou uma exegese poética da Lei 8.666. ----- Todo mundo ali acredita que pode melhorar de vida com nossa ajuda, mas isso ainda não está acontecendo(: veja o que você pode fazer, K (.) -----, Gilberto sugeriu, me passando endereços e linhas de ônibus para Lima Duarte. ------ Eu (?!) -----, pensei comigo, surpreso. Primeiro, Gilberto deixou que seu currículo de pesquisas falasse por si; mas ele não sentia mais a mesma coisa por aquele negócio de geração de renda, estava muito deslumbrado com o gigantismo dos programas sociais do governo, as viagens e reuniões em Brasilia; o novo status era um poluidor jurídico; o parto da grana pública era um projeto de geração de carma, não de renda. Agora ele estava disposto a visualizar seu papel mais sob o ângulo de chegar aos confins financeiros do Ministério do Esporte. ------ Eu não precisarei cumprir horário, nem bater ponto aqui na sede (?) -----, perguntei à ele, esperançoso de que fosse verdade. -----Preciso que você primeiramente percorra nossos projetos e regularize tudo (.) -----, respondeu ele ----- Depois voce pode trabalhar na sede diariamente (.) ------, concluiu,. Ele aprendeu com aqueles jogadores do terceiro setor as mil e uma maneiras de dizer ''Eu não sei '' a respeito de cada projeto, fazendo tudo parecer muito bonito. Mas o ''Eu não sei '' o que seria melhor ---- para o projeto, para a universidade, para a Câmara Municipal, para o Ministério do Esporte, para si mesmo, para todas as empresas no páreo, menos para os beneficiários... o que seria realmente melhor parecia ser algo bem relativo e condicionado por um xadrez de canetadas. Todo mundo daquele ramo estava cansado de saber o que era o melhor: caminhões de dinheiro, torrentes de verbas públicas ejaculadas pelo ministro e o vice-ministro, pacotaços de programas sociais de tirar a respiração de qualquer advogado, com verbas para trezentos, quatrocentos núcleos ou mais, que infundiriam uma confiança generalizada na turma local do partido, além de soberba e desprezíveis maquinaçõeszinhas políticas de homens-partido. A simples presença do dinheiro público na instituição injetava veneno nas pessoas. . ------ Mas esse tipo de grana é muito tímido para iniciantes e só aparece condicionado por muita politicagem e acordos de bastidores. Vamos criar um capital político? , é quando o desejo de todo mundo é forçado a brotar na estufa da rivalidade sutilmente administrada, ou recompensada... certo (?) -----, ele disse por fim, e eu voltei para o hotel com os nomes de todas aquelas cidades mineiras retinindo na minha cabeça e tendo meu novo blog como único espaço onde eu podia pensar livremente. Às vezes, podia me ver sonhando de olhos bem abertos, me movendo entre todas as descrições possíveis da realidade, sem saber se eu estava na cama ou sentado diante do notebook; e ás vezes, quando eu esperava fechar os olhos e me entregar à mais deliciosa sensação de sonho, via-me lutando com um parágrafo cheio de luz intelectual desconhecida, num corte do pensamento habitual. Atravessar esse golfo de palavras insones era inebriante: todas as rodovias da mente eram esfolitivas, e o golfo era um grande drama de luz e vapor nteligentes, com nuvens grávidas de frases sempre desabrochando no meu cérebro. Em Cataguases, fiquei dois dias sozinho num quarto louco de uma louca fundação, fui numa rave, redigi contratos de prestação de serviços, de estagiários, termos de cooperação, termos de ajuste de conduta trabalhista, dei uma aula sobre processo legislativo, entrevistei pessoas, refiz todo um convênio entre ONGs e Câmara Municipal e revisei um imenso edital de licitação. Quando acordei, achei que estava novamente em Lima Duarte. Ao entardecer, olhei pela janela de onde eu estava e vi os picos enevoados de um conjunto de montanhas sugerindo uma vasta serra verde por trás. Vi nuvens combatendo; elas colidiam entre si como dirijíveis aleijados , deixando rastros de detritos enlaçados flutuando no céu. Parecia-me de novo que estava numa fronteira, e que a paisagem exterior tinha sido internalizada com precisão mediúnica, que dois mundos inteiramente distintos tinham se fundido impecavelmente, após lutarem pelo domínio do meu espírito. De repente, me lembrei do Centro de Tecnologia Social visto de fora, na tarde anterior. Era óbvio que as instalações conhecidas como ''sede'' foram prejudicadas por terem estado sob o encargo do departamento de horticultura; mas seu lado sul, que já tinha sido uma inclinação gramada e vazia, era agora uma cerca viva ondulante e perene, cujos dois tentáculos abraçavam um pequeno jardim estilizado. ----- Gastaram muito dinheiro na nossa vitrine (alguém me soprou no ouvido), mas faltou para a plantação e o escoamento (.) -----, o jardim era delimitado por uma cerca de buxo perfumada e cuidadosamente aparada. ---- Pode ser (respondi ), mas a jardineira daqui é uma verdadeira artista (.) ----, diante de mim, uma extensão de flores anuais cascateava colina abaixo, espraiando-se pelo terreno plano numa enxurrada de encarnados, dourados, amarelos, bromélias e rosas. Aqui e ali, discretamente colocadas, espécimes experimentais testavam o clima; bem próximo do longo muro da parte sul da sede, alguém ,numa época qualquer, sem se dar ao trabalho de pedir licença, nem verbas, nem permissão à administração da ONG ou à equipe encarregada da manutenção do terreno, havia plantado um renque de figueiras e pessegueiras belíssimas, fazendo em seguida uma espaldeira. ----- O povo por aqui é vivedor, jeitoso (... -----, comentei com o auto-proclamado diretor do CTS, velho líder comunitário de uma invasão urbana em Juiz de Fora, atirado ali no meio daquela gente para tentar falar mais alto que os outros. Acendi um cigarro e esvaziei a mente admirando pesados e reluzentes figos maduros e pêssegos inchados de sumo pendendo dos galhos. Mais tarde ( explicaram-me) todas aquelas frutas desapareciam, sem jamais reaparecer nas lojas de doces de Lima Duarte ou nas sedes das agremiações dos membros do projeto. Então algum dinheiro era depositado nas contas dos trabalhadores, e um cálculo estranho aparecia nas notas fiscais. Tampouco eram vendidos em algum evento da ONG em nome do departamento de horticultura para levantar fundos ou remunerar os verdadeiros produtores. Procurei me fixar na beleza do jardim, na identidade da jardineira. Aquelas flores ao sol quebravam um engradado de estrelas na minha cabeça.
(continua)
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
4 - COBERTOR ESCOCÊS
Ia às bibliotecas e anotava num caderno boa provisão de cenas, metáforas. Separava os materiais por temas: brilho do luar, brigas, assassinatos, manhãs de primavera, dias de chuva, amantes que se abraçam, etc.. Punha tudo isso no computador e a partir desse pot-pourri eu tirava novas harmonias. Eu não estava roubando a plantação, apenas colhendo alguns frutos: quando em nível microscópico, a fraude não pode ser detectada. A voz de Julia estava cansada, coloquial, natural , levemente fanhosa como se estivesse resfriada; o cabelo loiro escuro comprido, com os anos adquiriu fios prateados quase invisíveis, intensificando seus estranhos traços de índia, não de índia verdadeira, mas da garota branca capturada e criada em tendas enfumaçadas; o rosto, ali nas montanhas de Juiz de Fora, tinha ficado mais duro e cinzelado, os lábios sem batom, mais finos, os olhos, mais opacos. A cor da pele, depois de um longo fim de semana na praia, comigo, estava mais do que bronzeado, com um fulgor facilmente absorvido pela pele. Era verdade que seu corpo estava mais largo, mas com seu antigo senso de elegância ela manipulava bem o novo peso enquanto eu explicava à ela minha teoria do plágio: ------ O plágio, doutora, não existe (: é só uma tonalidade que se empresta à vida (: sou apenas um glutão mimético como estes pássaros poliglotas que sabem contra-fazer todos os cantos para extrair a síntese suprema da própria garganta. Devoro todos os livros enquanto a humanidade brinca de asneiras nas redes sociais: pego tudo que passa sob meus olhos desde os doze anos de idade, coloco adiante como um degrau(: neste exato momento, enquanto você me ouve falar, eu me alinho sinistramente à sua postura, avalio a incidência da luz no quarto, a sua maneira de me escutar, seu comportamento, seu temperamento: me pergunto em que livro você poderia estar .. posso continuar falando indefinidamente , enquanto eu quiser te ter nesta indefesa disposição de espírito(: isso é mais forte do que eu, sou uma águia ávida por desposar todos os contornos do céu (: conhece aquela história do camaleão que se instala no cobertor escocês (?) ------, eu me perguntava se aquele não seria exatamente o ruído do desenvolvimento de meu personagem que agora continuava na espiral infinita, e este roçagar, o roçagar de sua incerta multiplicidade... da minha derradeira figura separada do personagem por uma membrana aracnídea, extremamente difícil de ser visualizada. ---- Alguns segundos mais tarde (eu disse à Julia ) o camaleão explode, não sabendo mais escolher entre as cores (: minha população sorridente e colorida estende-se então à terceira ou quarta geração de personagens, mais real, mais presente do que as cartas e telefonemas mais intermitentes - certas epifanias de negócios (
(cotinua)
3 - FIO ARACNÍDEO
------ Considere por um instante (eu disse à Julia) esses milhares de obras-primas encalhadas sobre tantas prateleiras do mundo como destroços de uma cultura arruinada: é uma quantidade incalculável que ninguém lê; túmulos de signos luminosos, murados para sempre no silêncio da indiferença... é uma honra para mim o papel que assumi, de reciclá-los (: se tudo já foi escrito, para que recomeçar (?), para que buscar novas idéias (?), basta recortar, fundir, transubstanciar, numa palavra, servir-se (.) ------, de fato, na minha suíte, naquela tarde, não havia a menor pressa e podia-se pensar no quiséssemos: minha obra-prima já estava concluída, e a vagina de Julia já estava casada com meu falo para sempre, desde o passado, ainda que nossos corpos tenham seguido caminhos tão diferentes. De manhã, no dia seguinte, estávamos frente a frente na cama, agindo como se fôssemos independentes, como se meu pau e sua xota existissem apenas para fazer água. A noite tinha sido agitada , e agora, dormindo profundamente, ela nem ligava para as sacudidas que eu lhe dava; eu estava com uma daquelas ereções estúpidas e insensíveis como a do remendo literario da véspera. Com a ponta dos dedos, eu movia Julia à vontade: devo dar uma esguichada dentro dela e deixá-la (?), ela está abrindo e fechando como uma flor. A flor diz: fique ái, meu garotão! A flor fala como uma esponja bêbada. A flor diz: quero acalentar esse pedaço de carne até acordar. Permaneci imóvel, mal respirando, enquanto ela ficava cada vez mais perto de gozar. Segundos antes de gozar, ela pararia repentinamente, fodendo lentamente meu pau um pouco mais, subindo e descendo, siriricando por uns instantes. Com os dentes cerrados, Julia passou a fazer uns ruídos incríveis, seguidos por sons faisanescos tão soberbos que eu não sabia dizer como tinha conseguido viver sem eles até então. Enquanto eu obedecia, estudei todos os ângulos de sua expressão de clímax, tentando registrar seu pico transitório em minha mente. O corpo dela perdendo nome e endereço, querendo cortar o meu pau e conservá-lo dentro dela para sempre, como um canguru. Julia não era apenas aquele corpo deitado de bunda para o céu, o vítima indefesa de uma cobra no meio do mato. Jato de gotas brancas num gramado verdejante. Essas adoráveis pombinhas, que é como ela as via, estão lhe dizendo, à sua maneira arrulhante, a criatura graciosa e dadivosa que ela é; a massa branca é apenas bolo de anjo: se ela virasse um pouco mais os olhos enquanto está abençoando as pombinhas de Deus, veria a si mesma apenas como uma rapariga desavergonhada oferecendo a parte traseiro do seu corpo a um homem nu, como uma égua no campo. Mas ela não quer pensar nessa rapariga, especialmente numa postura tão equina; quer conservar a grama verdejante e a sombrinha rosa aberta. Julia conversava com muita elegância, agora, como se estivesse toda de branco, com os sinos da igreja tangendo: estamos em nosso cantinho privado do universo, uma criatura com aparência de noviça recitando os Salmos no Sol. Meu pau ficou agora macio e plumoso, tão cálido de amor, um pedaço de sangue embrulhado em veludo. O Sol brilha fortemente lá fora e (como é bom: estár aqui aquecendo suas frias partes traseiras: as pombas gotejantes no meio de suas pernas, asas roçando levemente o arco de mármore (de um lado, se o vórtice cessou, de outro, um movimento perdura, marcado mais insistentemente por uma dupla pancada que ainda não, ou jamais, alcança sua própria noção, e da qual um roçagar do momento, tal como deveria verificar-se, preenche de novo confusamente o vórtice ou sua cessação: ------ Não vou te perguntar nada, K (Julia disse) porque você poderia mentir na minha frente, como já fez muitas vezes antes, mas poderei te dizer se estou certa ou errada na próxima vez que te encontrar: você ainda ama sua ex-mulher (?) não responda(.) -, ela riu na minha cara. - Qual delas (?), a irmã de uma delas é uma beleza (eu rolava a cabeça de um lado para o outro. ------ Como ela se chama (?) -, perguntou Julia. ------ Fernanda (.) a primeira vez que vi ela de biquini quase gozei dentro da piscina do meu sogro, em Varginha (.)-----, respondi, relapso, como se a queda total do momento , que foi a única pancada nas portas do túmulo após a ejaculação, não abafasse a visitante e sua sombra de perguntas: a mais ou menos dez centímetros de sua vala aberta eu observava meu dedo indicador, que se misturava ao seu nervo cor-de-rosa -olhando-a de --- não, gradual pressão daquilo que não se percebia, embora não explicasse a evasão certa num intervalo... que tipo de ternura, ó criança (eu me perguntava mais tarde: que palavras inesperadamente sábias ou amistosas, que bater de asas voltariam a alcançar meu coração escondido daquele anjo, distante da minha selva, da minha raça, do meu céu (?), não foi difícil que meditando no hálito que havia roçado por ela, eu baixasse meus braços (alguma dúvida última: de passagem, agitando minha próprias asas; mas a fricção familiar e contínua de uma idade superior me tornava terrivelmente pensativo, com as mãos nos bolsos da calça jeans, chutando distraidamente alguma pedrinha pela Avenida Oceânica... rimo aonde (?) a que solidões iniciáticas (?), das quais mais de um gênio foi cioso de recolher toda a poeira secular em seu sepulcro, para mirar em si mesmo aquele nojo pela literatura, que cada dia se repetia com mais força em mim, e para que nenhuma suspeita remontasse ao fio aracnídeo; para que a derradeira sombra se mirasse em meu próprio ser e reconhecesse na turba de minhas aspirações a estrela nacarada de uma nebulosa ciência oculta. Voltei a pensar em Nietzsche: ''Talvez se pudesse chegar a escrever algo verdadeiro quando essa repugnância pelos literatos e suas palavras moles chegasse a um grau irresistível; repugnância de verdade, dessas que podem provocar um jato de vômito com apenas ver um desses coquetéis de artistas que falam do amor e da morte enquanto disputam o resultado do prêmio Jabuti. Schopenhauer falava da Beleza com um ardor melancólico --- porque, em última análise (?) Porquê vê nela uma ponte na qual se chega mais longe... ela é, para ele, a redenção da ''vontade'' por instantes ------ ela seduz à redenção para sempre... ele a louva, em especial, como redentora do ''foco da vontade'', da sexualidade , como aderido ao dharma passivo do Buda. QUE SANTO ESQUISITO(!) ------ Alguém te contradiz, Arthur Schopenhauer... e temo que seja a natureza (.) Para que (afinal) existe beleza no som, na cor, no cheiro e no movimento rítmico da natureza (?) O que dissemina a Beleza (?) Felizmente, o divino Platão também te contradiz, sustenta outra tese: a de que todo Beleza incita à procriação (de que isso é justamente o ''proprium'' de seu efeito, do que há de mais sensual ao que há de mais espiritual.
(continua)
(continua)
2 - CAVALO MORTO
Agora, cinco anos depois, ela reaparece aqui dizendo que leu tudo que publiquei na internet nos últimos tempos e que... seu único fraco é a televisão, que assiste horas a fio. ----- Tv a cabo (.) --, disse, e me convidou a pôr ''algo especial'' na vitrola. ----- Shérérazade, de Rimsky Korsakov (.) -----, sugeriu ela, e eu respondi que seria uma ótima opção, se tivéssemos dezessete anos de idade e fôssemos europeus. Observei-a atentamente: ela parecia realmente segurar algumas daquelas lembranças com as duas mãos, maravilhada com a matemática oculta de algumas daquelas formas poéticas inacreditáveis, a espiral narrativa perfeitamente logarítmica e as ''câmeras'' crescentes dentro das personagens. ----- O que meu poema não conta (eu disse) é que no final o herói abre os olhos e recupera sua personalidade (: ou seja, eu, o homem conhecido neste livro(: ''Os dois provavelmente terminal batendo um longo papo, hein(?)'', digo para mim mesmo, olhando para você (.) ---, Julia estava mais gorda, sem que isso destruísse completamente certa graça natural que adejava, tendo como foco os pulsos e os tornozelos. Lutando para me ajustar à presença dela e ao ambiente da casa vizinha ao zoológico, lembrava-me em rápida sucessão de rabiscos à crayon com letras de jardim de infância, de Juiz de Fora numa longa noite de chuva, de poemas presos com ímãs na porta de uma geladeira, nas minhas telas pintadas pela metade, encerradas na praia de todos os verões; em quartos alugados às pressas, em colagens de textos perfeitas, em haikus escritos com pena de corvo; em libros recortados durante um certo Natal; em Joana, Sabrina, Beatriz, Carmen, Isabel e outras; neste circo de papelão embaixo da minha mesa que ninguém sabe quem fez. --- Como vai sua ex-mulher, K(?) ---, ela me perguntou. ----Joana (?), ela agora é uma encantadora granfina da elite branca que tira seu espírito de alguns livros que lemos juntos naquela cobertura imensa (: todo mundo que pinta ''vê'' alguma coisa em Mallarmé(.. ao passo que Sabrina, que nunca lê nada, tornou-se realmente ''alguém'' (.) ----, mas Julia não sabia de quem eu estava falando. ------Ela também pinta (?) ------ , perguntou-me. ---- Não, ela é uma prostituta de luxo (.) ---, respondi. ------- E voce frequenta a dama (?) ---, Julia ria. ------ Não tenho dinheiro para pagar o preço dela(: acho que ela nem mora mais na cidade (.) ------, eu sempre tinha amado Julia, do meu jeito, desde quando ela tinha apenas dezessete anos; ela sempre adotava diante de mim uma atitude de brilho cortês, de entusiasmo filial. ---- Sabrina é a melhor amiga de Joana (.) ---, concluí; na minha lembrança, a linha firme do queixo da minha ex-mulher, do seu pescoço e dos seus ombros, aparecendo com a suavidade fantasmagórica daquelas velhas fotografias de estúdio. ------- Outro dia ela me convidou para ir num evento e eu achei chatíssimo (: ela começou a estudar e trabalhar na empresa do pai, antes de terminarmos(: então, eu comecei a andar demais sozinho pela cidade, e a admirar demais as garotas que sentavam do meu lado nos ônibus, e numa bela manhã acordei com uma vontade incrível de pegar um ônibus para Ilhéus e escrever alguma coisa em completa solidão(.) -------, as pessoas da sociedade facilmente imaginam os livros como sendo uma espécie de cubo, do qual uma das faces é retirada, de modo que o autor se apressa em fazer entrar os fantasmas que invoca no escuro. --- Certo, não seria chato dar uma olhada nisto(Julia disse: lendo você, eu tomei o hábito de pesquisar entre os grandes autores antes de escrever uma carta ou um e-mail importante para alguém(: de um eu apanho um cumprimento... de outro um pouco de persuasão, de outro.. sei lá,... um epigrama bem elaborado.. e envergo tudo como uma vara até ela se tornar uma arco perfeitamente tenso, sempre causa impacto (: ainda mais se levando em conta que, de outra maneira, eu não teria absolutamente nada a dizer, como Antonin Artaud: ''toda escrita é uma bela porcaria'' (: mas te confesso que fazer isto com perfeição é muito mais difícil que escrever com as próprias palavras, é necessário muita cultura (.) ----, Julia realmente aprendia comigo e, vendo ela falar eu me lembrava de seus lábios fazendo aqueles biquinhos antigamente, pequenos e tensos em volta dos sons da língua francesa; quase me apaixonei por ela novamente. ------- Sem dúvidas há muitas confidências também, na escolha dos remendos (: vejamos esse remendo aqui, não me lembro a autoria, mas é especialmente notável. Posso ler pra você(?) -----, perguntei. --- Pois fique à vontade(.) ---, ela disse. ------ ''A buceta de Marta. Ela bem que sabe foder quando se concentra na coisa. Vou pegá-la meio dormindo, com os antolhos cerrados. Ali, bem quieta, deitada, enroscando-me na posição de colher. Ponho a chave na fechadura e empurro a porta de ferro. Ferro frio contra pica vibrante. Devo encostar-me furtivamente, e enfiar enquanto ela sonha. Subo silenciosamente as escadas e tiro desordenadamente as roupas. Posso ouvi-la se virando aprontando-se em seu sono para jogar para cima de mim a sua bunda quente. Deslizo suavemente para baixo das cobertas e me aconchego a ela. Finge que está desligada, morta para o mundo. que ela pode acordar. Devo fazer a coisa como se eu também estivesse dormindo, se não ela se sentirá insultada. A ponta já roça os cabelos soltos. Ela continua terrivelmente quieta. Quer trepar, sinto, mas não cede. Está bem, brinque de morto comigo. Eu a viro um pouco, só um pouquinho. Ela reage como um lenho encharcado. Vai permanecer assim pesadona e fingir que dorme. Já enfiei a metade. Tenho que movê-la como um guindaste, mas ela é móvel e está tudo perfeitamente lubrificado. É maravilhoso foder a mulher da gente como se fosse um cavalo morto''.
(continua)
(continua)
terça-feira, 18 de agosto de 2015
1- O FALCÃO PRUDENTE
Perdi a conta de quantas fatias de tempo ganhei abrindo aqueles livros nas páginas certas. Minha busca pelo refinamento literário inimitável começou como um mero passatempo, e terminou com raios de fogo e gelo; naquele verão , há cinco anos, Julia costumava ler os trechos grifados nos livros da minha estante, na suíte que até o momento ocupo nos fundos da casa da minha tia em Ondina, Salvador. Os olhos de Julia, com aquele brilho opaco, começavam enfraquecendo após algumas horas, e nossas preciosas tardes de leitura conjunta (enquanto a luz morria pela janela e um tronco de vidroeiro dançava sob as chamas de uma pequena fogueira no quintal) iam sendo substituídas por horas noturnas de música e amor. Naquele verão, Julia ficou tão animada com o resultado de algumas de minhas colagens literárias, que ela pedia para lê-las em voz alta para nós: Austen, Middlemarch, Joan Didion, um pouco de Proust e Mauriac em francês (até decidirmos que sua pronúncia era realmente ruim...
(continua)
(continua)
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
A vida espiritual é subversiva.
Não ser definitivamente parte de nenhuma facção ou linha de pensamento prévio para ser o homem de letras necessariamente subversivo (ainda sob o risco de ser incompreendido, taxado de maldito, por todos ao mesmo tempo) é o núcleo de seus planteamentos em cada intervenção desde o começo...
O princípio de provocação se superpõe com a vontade de investigação até o fim, isto é, até o inevitável encontro com a certeza de que, no limite de uma VERDADE, a palavra se silencia, se torna impotente ou insignificante, ou, no pior dos casos, se põe a serviço das forças que de maneira alguma pretendem que exista uma iluminação redentora. Se a VERDADE é insuportável e irredutível á linguagem, a função do intelectual (do homem de letras, melhor dizendo) é SUBVERTER, e essa subversão só será possível enquanto seja ABSOLUTA, ainda que o próprio escritor acabe afetado por aquilo que supõe uma aposta tão forte.
A subversão que constitui o tema común destas páginas é o movimento natural do espírito em cumprimento de sua vida. Pois a essencia da vida espiritual ou humana é subversiva, revolucionária
Pois a ameaça que os poderes dominantes lançam hoje contra o homem de letras é a exigência de uma metamorfose pequeno-burguesa que significa EXTINÇÃO.
Esses poderes já não são somente aqueles visiveis e tradicionais que se corporificam em estados, igrejas, partidos políticos, esoterismos, associações, etc, mas principalmente o impulso letal que circula de célula em célula em cada comunidade, as erráticas, mutáveis, mal intencionadas e severas pressões do estilo de existência geral
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